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À deriva na cidade (1): na madrugada, uma estranha sala que aparece

 

“… eu lhe chamaria mais uma vez para darmos um passeio até o fim da avenida, a ver se acabam nossas luzes.”  Maurício Vasconcelos

Madrugada. Continuávamos a andar, à esmo, pelas ruas do centro da cidade. Nem sabíamos que era uma arte da deriva. Naquela época nós apenas seguíamos sem rumo, deixando-nos levar. Você podia circular a pé, durante a noite em Belo Horizonte, nos anos 70 do século passado. Éramos os dois muito jovens: Mauricio Vasconcelos, um poeta apaixonado por Rimbaud, Artaud e pelos beatniks, e eu.

Esse era um meio de conhecer a própria alma: investigando o corpo da cidade.

Outro dia, Maurício esteve em Belo Horizonte e me deixou um livro de presente: E os hipopótamos foram cozidos em seus tangues, de Jack Kerouac e Willian Burroughs. Maravilha! E quando eu fui lendo a história daquele crime (real) envolvendo os dois beatniks, com todo aquele clima da 2a Guerra e aquela vida vadia, eu ria silenciosamente. Nada como um bilhete desses para dizer, não precisamente do que foi, mas do que corta a retina desses tempos com a lamina do passado. Uma imagem que se alojou no meu cérebro e que se tornou uma espécie de leitmotive para a performance.

Então, estávamos andando à deriva. Acontece de passarmos por uma porta aberta, que dava para uma pequena escadaria com sua luz mitigante, de onde vinha o som de um piano, no meio da madrugada. Já estávamos na região do Bairro Preto. Tínhamos saído do centro, dos seus edifícios burocráticos e residenciais, para entrar no velho bairro. Havia todo um tom lusco-fusco. E os degraus ali, convidando a gente. Olhamos um para o outro e decidimos: vamos subir, seja lá o que for.

O coração quase saia pela boca, mas seguimos mesmo assim. E logo chegamos numa sala com toda aparência de ser residencial, onde um homem negro e de terno cinza e gravata tocava piano, enquanto outro, também negro e de terno e gravata, estava de pé com um copo de bebida na mão. No centro, uma mulher, de longos cabelos pretos e algum tom vermelho na roupa, dançava sozinha e languidamente.

Ninguém parou para nos olhar ou nos perguntar qualquer coisa. Uma cena de cinema, ali, diante da gente. Ficamos parados, absortos. Mas não ousamos dar um passo à frente. E o homem continuava a tocar, a mulher a dançar suavemente e o outro a beber e balançar o corpo. Os móveis eram antigos, havia todo um tom meio esverdeado nas paredes e pouca luz.

E nós ficamos parados, olhando aquilo.  Acho que nem respirávamos direito. Ninguém dizia nada, muito menos nós. Não conseguíamos dar um passo à frente. E eles pareciam não se incomodar com a nossa presença. Continuavam ali, naquele estado, e tudo parecia uma eternidade. Resolvemos cair fora. Descemos as escadas e sumimos, deixando para trás aquela estranha cena.

Referências –

E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques. Jack Kerouac e W. Burroughs. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. Editora Companhia das Letras Veja a resenha do Suplemento Literário.

– Arte da deriva: Breve histórico sobre a Internacional Situacionista. Por Paola Berenstein Jacques. Arquitextos. Vitruvius.

Mapa afectivo da cidade – Psicogeografia #1. Por Conjunto Vazio

– Crédito da imagem: por esc861

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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