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Indústria criativa não é panaceia: os equívocos do Minc

Falar das chamadas indústrias criativas tornou-se quase uma obrigação. Até porque, agora, uma secretaria do Ministério da Cultura foi criada para cuidar das Economias Criativas. No entanto, parece que isso virou uma panaceia. A ministra Ana de Hollanda, numa recente entrevista à Folha de São Paulo (13.01.20011), diagnosticou a necessidade de emancipação das Leis de Incentivo e, consequentemente, de profissionalização dos artistas, afirmando que a economia criativa prepararia “o ambiente para que isso flua, para que a produção seja difundida.” E é nesse diagnóstico e nesse vínculo causal que residem os equívocos da nova orientação do Minc.

Quando a ministra faz esse diagnóstico sobre as Leis de Incentivo, ela toca na questão do financiamento da cultura. Se a necessidade de rediscutir a questão é mais do que pertinente, a entrevista coloca o modelo de mercado como sendo o parâmetro de “emancipação” dos artistas. A ministra diz que seria necessária uma visão mais sistemática, de modo que “a cadeia produtiva possa trabalhar do começo ao fim, da criação até a distribuição e a venda”. Que é necessário algo mais contínuo e menos dependente de Leis, podemos concordar, mas que o enfoque seja direcionado numa trilha única de produção, distribuição e venda, não.

O diagnóstico da ministra não leva em conta a complexidade da vida cultural, parecendo selecionar somente um aspecto: há uma cadeia produtiva e os artistas podem se integrar a ela. Isso se traduz em: é preciso aprender a viver sem Leis de Incentivo, ou seja, sem ajuda do governo, podemos concluir. Nisso algo fica mal explicado: e os tantos produtores de cultura que não se enquadram no modelo das artes corporativas, das artes do espetáculo, como que é que ficam nessa história? Eles também deverão se profissionalizar?

Daí decorre o vínculo causal: a economia criativa como meio que fará fluir a produção cultural. Ou será somente a produção artística? O equívoco, nesse caso, reside na confusão entre indústrias criativas, economia criativa e economia da cultura. Essas coisas não são as mesmas, apesar de interligadas de algum modo.

Ora, uma economia da cultura deve dar conta tanto das indústrias criativas quanto das diversas modalidades de expressão cultural e artística do país. Inclusive daquelas que não nascem como mercadorias e nem têm isso como fim último. No mínimo,  a economia da cultura é  uma ferramenta para possíveis escolhas de investimento etc. Ou será que pretendem incluir, sob a rubrica de economias criativas, toda a economia da cultura?

O que há de interessante na economia da cultura é a flutuação das fronteiras entre profissionalização e não-profissionalização, apesar de a primeira conservar seu polo atrativo de força. E é nessa região fronteiça que a diversidade da cultura, já num parâmetro não-assistencialista, pôde avançar nos últimos anos.

Aliás, o que caracteriza a mobilidade e fluidez do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial é essa natureza tanto reversa à sua lógica quanto a ela assimilada ao extremo. Entretanto, a emancipação passaria antes por uma liberação do desejo, não o vinculando a um mundo de mercadorias, mas também não o impedindo necessariamente de circular no mundo das trocas. Ninguém pode controlar, ou pelo menos não deveria controlar, o devir de um processo cultural.

Leonardo Brant, num texto sobre o tema das economias criativas, mostra a ambivalência da questão no capitalismo contemporâneo:

“Em crise profunda, o capitalismo agora produz a economia sustentável, solidária, criativa. Mas continua sendo economia, com a mesma lógica e os mesmos instrumentos de apropriação do público em direção ao privado. Novos mercados criados para gerar novas oportunidades de negócios, ou novas abordagens para os mesmos mercados. A economia é criativa.”

Portanto, o Minc deve mostrar com mais clareza o que vem a ser essa via da economia criativa como saída para a dependência das Leis de Incentivo.

Por fim, é necessário dizer que ninguém deve sentir-se diminuído por participar de recursos públicos para a cultura. Tais recursos  são oriundos de nossas vidas expropriadas, de impostos cobrados etc. Uma política pública de emancipação deve pautar-se pelo empoderamento da sociedade civil. E os recursos do Estado devem fazer parte desse plano.

Referências –

– Entrevista de Ana de Hollanda: “Leis de Incentivo criam dependência”

– A economia é criativa. Por Leonardo Brant, Cultura e Mercado.

– Política Cultural: redes ou centralidade? Por Luiz C. Garrocho

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

8 respostas em “Indústria criativa não é panaceia: os equívocos do Minc”

Excelente texto, Garrocho. Quando se lê a entrevista da ministra tem-se uma sensação otimista e até ingênua. É fácil cair na crença de que a economia criativa pode ser um remédio pra todos os males, mas aqui você evidenciou aspectos importantíssimos que relativizam e problematizam a questão, abrindo uma discussão fundamental. Obrigado pela contribuição.

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Marcos,

Sim, parece um otimismo ingênuo. No entanto, não estará junto a isso uma “definição de cultura”? Ronaldo Lemos define muito bem o que está acontecendo no Minc: “cultura como consumo passivo”. Veja em: http://bit.ly/i9uPdX

Abraços

Bacana o texto Garrocho! Essa contradição interna que você aponta no MinC já estava expressa no discurso de posse da Ministra, quando ela reduziu a cultura ao trabalho artístico autoral. É grave quando um Ministério da Cultura reduz seu interesse estritamente à questão artística. Acho inclusive que essa discussão sobre direitos de autor, arrecadação e distribuição acaba tirando o foco de um problema ainda mais grave e profundo nessa gestão, que é a falta de um projeto de política cultural para o país.
Abraços

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Ei, Makely

Importante esse alerta seu. A discussão em torno dos direitos autorais pode estar realmente tirando o foco da questão: a ausência de uma política cultural para o país. Ou podemos, ainda, estar assistindo à desmontagem de todo um esforço anterior de política cultural.

Também concordo com você, quando aponta a gravidade da situação: um Ministério da Cultura que “reduz seu interesse estritamente à questão artística”. E nós, que militamos nas artes, sabemos o que significa essa armadilha: no mínimo a recaída num corporativismo e numa visão exclusivista, em todos os sentidos, das artes.

Abraços

Querido Garrocho,
Você como sempre muito lúcido nas suas idéias e textos. Embora tenhamos discordâncias com relação a algumas coisas que nem vale a pena repetir, sua análise profunda é admirável e provoca o pensamento e isso é o que importa.Continuo dizendo que o estado deveria manter-se excêntrico – para usar uma palavra esquisita – no que se refere à cultura e à arte. Isso não quer dizer indiferente! Mas menos intrometido. Não adianta reformular políticas públicas em busca da melhor atuação na cultura. Quanto mais o estado policia, regra,rege a cultura mais predatório se torna. Pois são grandes as incompatibilidades entre as máquinas estatais e a produção cultural ou artística, com ou sem políticas de inclusão.
Lembro-me das grandes dificultades que você enfrentou quando da criação e gestão dos projetos culturais que administrou. A coisa só piorou desde lá no plano municipal e federal como é óbvio.
Obrigado por compartilhar suas análises.
Um abraço,
Marcelo Kraiser

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Marcelo,

Agradeço sua visita e, mais ainda, suas viradas pelo avesso.
Ainda bem que discordamos. E nossas discordâncias não seriam modos diferentes de enfrentar o inimigo – que seria, afinal, a sujeição da vida?

Quanto à intromissão do estado, isso é o que teríamos de examinar de perto, não? Concordo com você: o estado não produz cultura e a cultura do estado não nos interessa.

Porém, há todo uma discussão em curso: ultrapassar as “políticas de governo” para as “políticas de estado” – ou seja, evitar que programas e projetos fiquem por conta do “humor” ou da “boa vontade” dos governantes.

Mas o que seria isso? Acredito que o equívoco é cair numa espécie de “reserva de mercado” garantida por Lei. Aliás, o que as reivindicações corporativas mais querem. Vejo por outras linhas: o empoderamento da sociedade civil. Acho que o Minc, na gestão anterior, caminhou nessa direção, ao apostar na diversidade cultural, na ampla participação etc. Agora, parece que a coisa está mundando…

Abraços

Um grande abraço

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