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O teatro e os regimes de significação

 

Imagem: Worms in process

 

Quando se discutem os processos de subjetivação política, a metáfora do teatro ganha contornos e usos. Aspectos como representação (política, social etc.) e comunicação, assim como a definição do espaço público, são alguns dos elementos invocados. E a contrapartida também deve ser considerada: o exercício cênico como campo propício à experiência de subjetivação política. Não porque o teatro necessita ser político, mas porque ele, como toda ação artística, é político como tal.
No caso específico da encenação teatral, a construção de uma forma sensível do coletivo é uma das características marcantes. E isso pode ser visto no fato de arregimentar e realizar o embate de forças e funções (as regras sob as quais se organizam, os planos hierárquicos ou horizontais das cooperações), na definição da ocupação e reconfiguração do lugar (mise-en-scène, espaço social, arquiteturas e agenciamentos maquínicos de expressão) e do relacionamento entre criadores e público.
Ocorre que a definição do espaço público – do que expressivamente se torna algo público – tem sido justamente devedor dessa metáfora teatral, entendida de modo hegemônico como representação e comunicação.
Venho insistindo que tais formulações não definem uma essência do teatro. Antes disso, elas fazem parte de um processo de subjetivação política do qual essas visões tornam-se máquinas de expressão.
Outro dia, conversava com um amigo e artista, que muito admiro, sobre a noção de “comunicação teatral”. Expressão muito utilizada para dizer do relacionamento entre criadores e público. Ele me perguntou se eu não gostava do termo e simplesmente queria substituir por outro. Se não era uma espécie de birra com a palavra. Invoquei Gilles Deleuze: já temos comunicação demais, é necessário criar ilhas de não comunicação!
A comunicação, segundo Deleuze, é o que tem dominado. E a arte é o que pode resistir a isso. Continuamos a conversa e chegamos, juntos a um lugar de desejo: os espaços e os tempos de um compartilhamento. Tomamos a asserção de Grotowski: atuar diante de alguém e não para alguém. Mas isso é somente uma operação nominal? De modo algum, o pensamento prolonga-se em movimento – e vice-versa. O que eu queria, também, era demover este parceiro de tantas inquietações, desse buraco chamado “significação teatral”. Não queria, então, buscar a verdade última, que essa é outra armadilha, mas sim trazer o parceiro para as potências assignificantes. Que a meu ver, já se encontram no seu próprio trabalho. É puro combate.
Pois então, não se quer com isso dizer que encontramos uma expressão mais aprimorada, no sentido de uma correção etc. Adoto, antes, o viés de um perspectivismo (Nietzsche), no qual o sentido de uma coisa (fenômeno, processo, atividade) está nas forças que ocupam essa coisa e nela se expressam. Assim, representação e comunicação não são conceitos e usos superados. Ao contrário, fazem parte de muitas práticas. São recursos ou instrumentos das máquinas de expressão, que chamamos de teatros, que singularizam certas experiências. Nem piores nem melhores. Porém, não deixemos de registrar: tentam sempre se passar por totalizantes e universais!
A representação e a comunicação são meios estruturantes de uma experiência do teatro como regime significante. E é isso, precisamente, que proponho discutir, procurando mostrar que há experiências que prezam não a significação, mas o sentido. E que passam, por sua vez, por cortes compositivos de a-significação.
Vem a calhar, a esse respeito, um texto de Maurizio Lazzarato, intitulado (O pluralismo semiótico e o novo governo dos signos – homenagem a Félix Guattari – vide, Referências). O autor nos coloca diante de dois regimes de signos: o regime significante e o regime assignificante. E mostra como a metáfora dominante de teatro tem se associado ao regime significante.
Lazzarato distingue, a partir de Guattari, entre servidão social e servidão maquínica. A servidão social é uma modalidade de subjugação e de individuação (identidade, sexo, profissão, nacionalidade etc.) na qual o mundo é apreendido no que Lazzarato chama de “armadilha significante e representativa”. Nela, as multiplicidades e heterogeneidade, assim como toda a vida pré-significante (a infância, o corpo etc.) é capturada pelas semióticas significantes. Os sistemas capitalistas fordistas, assim como o sistema stalinista, baseiam-se nessa sujeição dos processos assignificantes pelos regimes significantes. Lazzarato, aqui, traça paralelos com a noção de sujeição social em Guattari e as sociedades disciplinarias de Foucault. Entretanto, ocorre que o sistema capitalista, segundo Guattari, tem operado cada vez através das semióticas assignificantes. Pois, como mostra Lazzarato:

“O registro maquínico da produção semiótica do capital funciona sobe a base de semióticas assignificantes, que se orientam diretamente ao corpo (os afetos, os desejos, as emoções e as percepções) mediante signos que, em lugar de produzir uma significação, desencadeiam uma ação, uma reação, um comportamento, uma atitude, uma postura. Estas semióticas não significam nada; antes disso, colocam em movimento, ativam.”
Porém, a noção de esfera pública é devedora, em alguns filósofos, da metáfora do teatro como lugar de representação e, mais do que tudo, de significação.

Diz Lazzarato:

“As teorias que fazem da palavra e da linguagem as formas mais importantes ou exclusivas de expressão política (Arendt, Rancière, Virno) parecem ignorar todo o resto das semióticas assignificantes. Isso se deve a que o espaço público no qual se desenvolve o processo de subjetivação (Rancière) ou de individuação (Virno) se concebe como uma cena teatral onde os sujeitos políticos se constituem em sua dimensão molar e representativa, imitando a atuação de um artista ou de um orador diante de um público. A metáfora teatral me parece particularmente prejudicial para apreender o espaço político contemporâneo (Walter Benjamin: ‘essa nova técnica esvazia tanto os parlamentos quanto os teatros’).”

“O processo de subjetivação ou de individuação se vê então mutilado, já que na realidade as semióticas e as máquinas assignificantes redesenham e reconfiguram o espaço público e suas modalidades de expressão, afetando direta e profundamente a ‘palavra política’. Esta já não pode ser descrita mediante o funcionamento do poder de ação da linguagem tal como se exercia na ‘polis’ grega, que é o que, seguindo Hannah Arendt, fazem tais teorias. No espaço público contemporâneo a produção da palavra se organiza ‘industrialmente’ antes que ‘teatralmente’. O processo de subjetivação ou de individuação já não pode se reduzir à sujeição social, deixando completamente em suspenso a servidão maquínica. Paradoxalmente, todas essas teorias políticas e linguísticas contemporâneas que fazem direta ou indiretamente referência à polis e/ou ao teatro nos colocam numa situação pré-capitalista.”

Voltemos ao teatro. O nosso problema torna-se mais intrincado e, de fato, implicado. Porém, em vez de abordá-lo como um processo ideológico, passaríamos a vê-lo, na visada perspectivista e diagramática, procurando ver que forças e linhas (segmentadas, flutuantes ou de fuga) tomam posse dele e nele se expressam. Pois, como diz Deleuze a partir de Nietzsche, não é que exista uma coisa neutra, objetiva, que será apoderada por forças. A coisa é as forças que nela se exprimem.
Poderia contrapor à essa visão de teatro, na qual um emissor dirige-se a um público, uma noção outra, entendida, por exemplo, a partir do que Lazzarato chama de semióticas corporais, que ele reivindica para a dança. E também as visões de Deleuze sobre um teatro como experiência da diferença e de embate de dinamismos e forças, de máscaras anteriores às personas. Portanto, uma cena de potências assignificantes.
Entretanto, a experiência da cena – para ampliar mais o foco do problema e não se restringir a um possível núcleo duro e substancial chamado “teatro” – não está numa apreensão idealista ou pura. Invocamos sim, como no caso de Deleuze e, nessa visão de Guattari trazida por Lazzarato, uma apreensão de forças que podem molecularizar os encontros e os espaços de compartilhamento.
Diria, então, que caberia ver o que se passa em cada momento, em cada configuração de forças. Onde estão as potências de liberação, de não-fechamento e, por onde se dão também as capturas e modelizações do desejo. Para continuar a conversa, que é infinita, recomendo a leitura do texto de Lazzarato: o link encontra-se a seguir, em Referências.
Referências –
– LAZZARATO, Maurizio. El ‘pluaralismo semiótico’ y el nuevo gobierno de los signos. Homenaje a Félix Guattari. Traducción de Marcelo Expósito, revisada por Joaquín Barriendos

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Filosofia Micropolítica

Micropolíticas. Por Eduardo Pavlovsky

 

Eduardo Pavlovsky, dramaturgo, ator, diretor, psicoterapeuta e escritor, aborda as micropolíticas num texto inspirado e esclarecedor. Publico aqui algumas partes (o artigo completo, encontra-se na Revista Herramienta, vide Referências). Seus escritos sobre teatro apresentam a perspectiva das intensidades, da invenção, da resistência e do corpo. Fala Pavlovsky:

“Lo micropolítico es la expresión de un suave murmullo, a veces imperceptible, que los condenados de la tierra, los excluidos del mundo comienzan a expresar. Algunos no lo perciben. Son los que escuchan sólo los ruidos de los medios que nos intentan ensordecer todos los días. Es un problema clínico de auscultación. Son las voces nuevas que, con otras tácticas, se contagian por todos los continentes expresando sus balbuceos en sus diferentes singularidades. Pero el murmullo existe y hay que saber percibirlo. Se expresa a veces como murmullos inaudibles de los condenados, que quieren sólo recuperar la potencia de su dignidad humana en nuevas formas de expresión. Ninguna protesta se parece a la otra. Cada una expresa su propia diferencia y singularidad.

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Intervenção urbana: “não alimente as esperanças”

Intervenção urbana em terreno oriundo de demolição - autor desconhecido - Belo Horizonte

 

Uma intervenção urbana que logo me chamou a atenção. O autor (individual ou coletivo) teve uma sacada genial: remete à expressão “não alimente as esperanças” e ao mesmo tempo à literalidade de uma cerca, tal como no zoológico, quando os avisos pedem para “não alimentar” os animais. Na minha leitura, a imagem joga com as transformações da vida urbana (no caso, a demolição e as obras públicas no local), sempre em função dos automóveis. Seria uma ironia diante dos processos de modernização? Não alimente as esperanças… A intervenção em tela ocorre nas cercas de um terreno oriundo de uma demolição, para resolver as vias de transporte de veículos, no bairro Cidade Jardim, em Belo Horizonte. No outro aspecto, remete à questão existencial e também política, que conecta com a primeira. Poesia pura. 

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Filosofia Geral Literatura Micropolítica

Blanchot e o cotidiano

“O cotidiano: o que há de mais difícil a descobrir”.

Assim Maurice Blanchot inicia um dos capítulos de A conversa infinita(tradução de João Moura Jr, Editora Escuta, 2007). Somos levados a passear por signos, conceitos e vislumbres desse estado de coisas que chamamos de cotidiano. E o cotidiano, reitera Blanchot ao longo do texto, é aquilo que “não se deixa apanhar”. Por ser o que nos escapa, “ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível”. Blanchot caminha pelas diversas fases do cotidiano, apreendendo nesse movimento suas defasagens: revelações súbitas, iluminações avulsas, contrapontos e contratempos.

Numa primeira acepção, diz Blanchot, o cotidiano é “aquilo que somos em primeiro lugar e o mais frequentemente: no trabalho, no lazer, na vigília, no sono, na rua, no privado da existência”. Então, um movimento seria o de abrir o cotidiano à história, ao Verdadeiro. Lugar da Revolução.

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Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos: ações poéticas do Poro

O Poro, formado por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada, está lançando seu livro. A dupla de intervenção urbana registra em imagens e textos o percurso e o embate de sua poética. De minha parte, a alegria torna-se maior por ter escrito, juntamente com Daniel Toledo, um dos artigos. Escreveram também: André Brasil, Anderson Almeida, Daniela Labra, André Mesquita, Ricardo Aleixo, Renata Marques com Welington Cançado e Newton Goto.