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EM BUSCA DO CORPO ANÔMALO

Num post, falei das visões de um corpo no chão. Jan Moura, da Confraria dos Atores, grupo teatral de pesquisa de Cuiabá, comentou o tema, lembrando o treinamento corporal de Eugenio Barba, mestre das composições que perfazem uma corporeidade exra-cotidiana. Coisas que são próximas e distantes. Atravessando a questão, volto à visão daquele post, em busca do corpo anômalo.

A distinção entre corpo cotidiano e corpo extracotidiano, é realizada por Eugênio Barba e demonstra que toda corporalidade é investida de uma segunda natureza. No caso da energia cotidiana, prevalecem os condicionamentos socioculturais, formando todo um modo sensoriomotor de sentir, perceber e se expressar. No sentido mais pragmático temos, entre outros traços, o de um mínimo de esforço para o máximo de rendimento. Isso quer dizer, também, que a leidos fins predomina sobre os meios. A orientação social e finalista é clara: se eu devo ir até a porta e abri-la para que entre alguém, tal ato não me pede mais do que o esforço mínimo e necessário para que a ação seja executada.

Já na energia extracotidiana, a ordem é invertida, havendo o máximo de esforço para o mínimo de rendimento. Ora, quando isso acontece, temos um dispêndio extra de energia, um dispêndio totalmente desnecessário do ponto de vista da funcionalidade da execução. Nesse caso, há uma corporalidade cuja presença se expande como luxo, para utilizar uma terminologia de Barba. Forma-se uma segunda natureza, mas que se recusa a atender às lei dos fins, tornando os meios, os percursos, as intensidades, como a modalidade de existência corporal.

Esse corpo extracotidiano será um corpo treinado, e, noutra perspectiva, poderia ser chamado de corpo-artista, para usar o termo criado por Christine Greiner (2005) para designar uma experiência em criação estética.

Um corpo artista possui habilidades ou treinamentos que o sustentam como tal, extraindo uma presença que se torna, como diz Barba, de luxo. Que corporalidade é essa? Poderíamos dizer que ela, ao se tornar presença, pode entrar sob regimes de signos não codificados.  Diria, por exemplo, que esta é uma perspectiva que foi bastante trabalhada por outro encenador, próximo de Barba (quando este se julga, sob certos aspectos, um discípulo seu), como Jerzy Grotowski. Há toda uma existência corporal para além dos limites impostos pela vida social, expressando-se principalmente nas situações-limite, de risco, de abandono de si. Posso dizer, então, que essa  corporalidade têm a potência e entrar em estados singulares e, acrescento, anômalos.

Você poderia concluir, então, que somente corpos treinados, às vezes sob modalidades quase secretas, de afastamento e negação dos contornos sociais e de suas premências, poderiam expressar tais estados singulares e anômalos. Porém, tenho insistido na existência de corporalidades que vivem tais situações-limite sem, contudo, serem corpos-artistas, ou seja, treinados. E acrescento, além disso, que os teatros pós-dramáticos e performativos, quando introduzem o real na cena (tudo aquilo que foi excluído do campo da percepção pelo teatro de ilusão), validaram as corporeidades não-artistas (não treinadas numa disciplina artística).

Assim como os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem que “a arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais”, também se pode dizer que a arte não espera o ofício da arte. A arte contemporânea não cessa de trazer à tona experiências corpóreas não restritas ao corpo artista, tomando este como habilitado pelos ofícios e treinamentos. Ou seja, outros corpos podem entrar na cena por uma via estética, isto é, em criação.

Busco obsessivamente a observação daquilo que chamo de corporalidade anômala, na trilha apontada por outro pensador, José Gil, numa apropriação do conceito de anômalo em Deleuze e Guattari (1997,b).

SÃO CORPOREIDADES OUTRAS, QUE O TEATRO DE REPRESENTAÇÃO NÃO PODE CONCEBER. Não porque seja pior ou melhor que um teatro não-representacional. Mas em função de cada um criar a sua própria paisagem. Você dirá: pode um teatro não ser uma representação? Teatro-fábrica em oposição ao teatro-interioridade: é essa distinção que se deve fazer, apesar das coisas serem, sempre, passíveis de todas as misturas.

O anômalo não é um categoria nem de indivíduo e nem de espécie. E também não se diz do anormal, mas antes do desigual (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Esses pensadores o conectam à multiplicidade e ao corpo atravessado por afectos: “é um fenômeno, mas um fenômeno de borda”.

A questão passa a ser: como um corpo-artista pode produzir uma corpo anômalo?

Referências

DELEUZE, G. E GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
GIL, José. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Anna Blume, 2005.
DRAMATURGY BEYOND REPRESENTATION:TEXTS, BODIES, SPACES IN CONTEMPORARY EUROPEAN THEATRE

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Intervenção cênico-urbana: um relato

Relato aqui uma intervenção cênica nos espaços urbanos, com atores sem formação sistemática e acadêmica em teatro.

O relato fala da transformação de um grupo de atores populares, sem formação técnica em artes cênicas, em performers físicos, que utilizaram alguns elementos de improvisação física tanto no ensaio quanto na apresentação. Eles continuaram realizando seus trabalhos, mas se permitiram, num determinado momento, realizar uma performance na rua, completamente fora dos parâmetros com os quais trabalhavam. Quando falo de transformação, falo da mudança de agenciamento cênico espetacular em que eles entraram:

Um grupo de artistas, sem formação técnica e acadêmica na área cênica, iria se apresentar num evento cultural. Trabalhavam nos dias de semana, a maior parte deles, como porteiros de prédios públicos e, nas horas vagas, realizavam shows de palhaços. Apresentavam um esquete, cuja base de atuação era histriônica, com uma presença cênica muito grande, conseguindo segurar a atenção das pessoas na rua: brincavam de fazer entrevistas com uma câmera de papelão, sendo que um deles, um dos mais histriônicos, fazia o papel da jornalista. O público, nas ruas, ficava eletrizado.

Propus a eles que, além dessa cena, realizassem um trabalho completamente diferente do que, até então, vinham fazendo. Sem mais nem menos eles aceitaram. Havia pouco tempo: quatro encontros, uma vez por semana à noite, após os seus horários de trabalho. A proposta consistia em: “cinco homens sentados em cadeiras na calçada de uma rua bem movimentada, por volta das 13 horas, sem fazer nada. Este “sem fazer nada” já era uma estratégia minha para que não contassem com as ações histriônicas, com as interpretações, com os estados emocionais, etc. A situação já falaria por si só, disse a eles, não seria preciso atuar, fingir, representar. Não se pretendia, além disso, construir uma história a partir das caracterizações. Se houvesse uma ficção, disse a eles, estaria antes na cabeça das pessoas que iriam passar pelo local.
Qual foi o procedimento inicial? Treinar em não fazer nada. Posso dizer que grande parte do tempo foi gasto precisamente nisso: não fazer nada. Ora, isso é muito difícil. Principalmente devido à visão que o grupo possuía de teatro, de espetáculo, não diferindo muito da que se encontra em outras esferas, com a diferença de que eles não se sentiam ameaçados (pelos menos não pude perceber isso) e entregavam-se totalmente ao jogo a que se propunham. Deparei-me com excelentes cômicos.

Não havia tempo para exercícios corporais: a composição era imediata – como a situação era minimalista, o tempo era todo nosso. Utilizei, apenas, o exercício de ficar de pé e respirar, sentindo os apoios. Depois, modos de chegar até as cadeiras. Propus que, no início, eles utilizassem seus narizes de palhaço. Depois, eles os tirariam. Mais adiante, trabalhamos com os modos de se levantar e a relação que surgia entre eles. E improvisamos com isso.
O que se pedia: conexão total e máxima entre eles, de modo que, cada movimento, por menor que fosse, afetasse todos. Busquei o patético que se revelava por si só: cinco homens, de roupas sóbrias (calças e paletós simples), sentados em cadeiras idênticas, na calçada de uma rua movimentada: isso já era informação demasiada. O que estava em jogo, portanto: perceber-se, perceber o outro, estabelecer alguns padrões de linha (as cadeiras enfileiradas uma ao lado da outra já proporcionavam isso), atenção plena.

Fomos para a rua. Havia uma estrutura básica, incluindo alguns movimentos em uníssono, sendo que, no meio, as improvisações ocorriam. Em alguns momentos, um deles disparava uma seqüência de movimentos, num misto de coisas criadas anteriormente e inventadas na hora. Havia sim um jogo, mas sem regras determinadas, a não ser a de se perceberem o tempo todo. Uma pequena seqüência coletiva de movimentos, cada um diante de sua cadeira, com ampla visibilidade, foi utilizada, a que eles recorriam por grandes intervalos de tempo. Eram movimentos de aquecimento, pequenos pulos no mesmo lugar, nas quatro direções. O resto era improvisação.

As reações foram colhidas por mim e por algumas pessoas que nos ajudavam. As falas fornecem um sentido de indiscernibilidade, que é justo o que se pretendia.
Dois adolescentes: “Olha velho, você disse que eles são loucos, não são loucos nada… Isso é teatro…” E o outro: “E o que é loucura para você?”
Uma senhora: “Será que eles são evangélicos?” Dois idosos: “Isso é teatro sim, olha lá.” O outro responde: “Mas não é daqui do Brasil não. Eles importaram esses caras aí para fazer isso…”

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De artistas cortesãos e artistas supliciados

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

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Contrário disso: a capacidade de um corpo ser afectado

No campo do teatro, principalmente, aparece sempre a questão do corpo como um fenômeno de comunicação. Que não passa de um equívoco: ver a cena como algo que é emitido (do ator/atriz) para alguém que observa (o espectador/receptor). Contrário disso, o corpo em termos das forças capazes de produzir afecções – numa visada do pensamento de Gilles Deleuze. Peter Pall Pelbart nos apresenta essa visão:

“… seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7.

Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença daquele a quem nada abala…
Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, pergunta Nietzsche. Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente8, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”… Porém, será possível dar espaço a tais “seres ainda por nascer” num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autossuficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria. Mas será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo?
José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca”9. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”10.
O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do corpo empírico.
Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o jejuador até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes”. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo”11, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo” do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida.
Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Há aí, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo”12.

Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa”.
Mas o que é essa vitalidade não-orgânica? Em “Imanência: Uma Vida”, último texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo – o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem -eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze”13.

Peter Pál Pelbart –

Referências:

7 – Barbara Stiegler, “Nietzsche et la Biologie”, Paris, PUF, 2001, p. 38.
8 – Witold Gombrowicz, “Contre les Poètes”, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.
9 – José Gil, “Movimento Total”, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.
10 – http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm
11 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, São Paulo, Ed. 34, p. 149.
12 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, op. cit., p. 149-150.
13 – G. Deleuze, “L´Immanence, Une Vie”, in « Deux Régimes de Fous », Paris, Minuit, 2003.