Trajetórias



Faço breves relatos de alguns encontros & possíveis. Em tempo: a imagem ao lado é do genial Nikola Tesla ao lado do seu mais famoso invento, o Tesla Coil) – uma imagem que sempre me inspira: quietude com o máximo de agitação e eletricidade.

Christina Machado, da Cia de Dança do Palácio das Artes convidou-me para um bate-bola de teatro físico. A Cia percorre ultimamanete as trilhas da experimentação, com foco no bailarino criador. Nos poucos encontros de três sessões, tenho buscado equacionar composição e improvisação. O teatro físico, como entendo: uma conjunção disjuntiva de estados corporais. Passagem das micro-sensações que percorrem o corpo do performer num diálogo (físico) com os outros corpos, objetos, espaço e tempo. Christina Machado busca com o grupo uma dança de fronteiras, como se pode perceber nos espetáculos recentemente encenados. O último trabalho intitula-se Transtorna e versa sobre as cidades, procurando reter sua fugidia realidade, sua fragmentação e partilha desigual. A Cia está se preparando para a próxima montagem, que deve ter a força dos coreógrafos Mário Nascimento e Sandro Borelli. Em Uberlândia (01 e 02/10) realizei uma oficina de improvisação em teatro físico na Escola Livre de Teatro do Grupo Pontapé. Foi muito bom conhecer o trabalho de Rubens e Kátia Bizinotto, que estão à frente do projeto. Os dois têm efetivamente promovido as culturas cênicas na cidade, produzindo e convidando espetáculos, oficinas, cursos permanentes de teatro, além de festivais, encontros etc. Na oficina procurei dar ênfase à clareza da composição corporal, elegendo algumas ferramentas, entre elas os Viewpoints, na trilha de Anne Bogart e Tina Landau, além da criação de seqüências de movimento configurando narrativas. Tiago Gambogi, do Grupo de Teatro Físico f.a.b. The Detonators, parceiro de Margareth Swallow, com sede em Londres, fez-me um convite-desafio: realizar uma consultoria, à distância, sobre o novo projeto de criação. ■ Ricardo Júnior, no seu auto-exílio para estudos cinematográficos na Argentina, convida para que escreva um artigo sobre o seu vídeo Material Bruto, com roteiro dele e de Byron O’Nell e direção de atores de Juliana Saúde. Material Bruto tem atuação da Cia Sapos & Afogados, um núcleo de usuários do sistema de saúde mental. O vídeo ganhou o prêmio do júri no Festival de Curtas de BH em 2007. Por fim, o Olho-de-Corvo volta à pesquisa, num Coletivo de Criação: Vim buscar sua alma (nome provisório que poderá vir a ser definitivo). Trata-se de uma criação que se desdobra em duas etapas: um vídeo em parceria com Byron O’Nell, contando com a participação de Alex de Castro, Davi Pantuzza, Jéssica Azevedo, Paulo Rocha, Naiara Jardim e Sara Vaz. Ricardo Júnior, da Argentina, dialoga com a pesquisa, lançando perguntas, propondo filmes. Aliás, a primeira etapa foi a realização de estudos sobre narrativas cinematográficas que chamo de disjuntivas, e os teatros pós-dramáticos: elegemos prioritariamente Godard, Glauber (assistimos, além destes, muitos outros) e o Teatro de Tadeusz Kantor, Zikzira Physical Theater e DV-8 Physical Theater. Depois passamos a circundar o universo da linguagem e da temática, lendo quadrinhos (Sanctuary entre outros), Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, textos de Deleuze e Foucault e filmes de Tsai Ming Liang e Kar Wai Wong, especialmente recomendados pelo nosso correspondente em Buenos Ayres, Ricardo Júnior. Foi um curso informal, mas muito fecundo, com ênfase nas narrativas disjuntivas. A segunda etapa será uma performance que irá focar a geografia intensiva da cidade, tendo como ponto de partida os elementos acionados no vídeo. Nessa etapa, outros performers e artistas serão convidados a entrar no jogo. O que falta: conseguir um espaço para ensaio, organizar o material e apresentar para uma empresa produtora. E, então, deixar que o delírio e a sobriedade possam entrar num acordo precário.

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Uma conexão Londres-Belo Horizonte: Teatro Físico e Dança Contemporânea

Tiago Gambogi e Margaret Swallow, da Cia f.a.b. – The Detonators , ele brasileiro e ela inglesa, são dois artistas que vêm realizando uma criação cênica processual que perpassa tanto os planos de um teatro físico quanto os da dança contemporânea. Os dois realizaram recentemente Made in Brasil (imagem ao lado), com direção de Nigel Charnock , um dos fundadores do grupo de Teatro Físico, DV-8, com cenas criadas em Belo Horizonte e Londres. A estreia ocorreu no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, em maio de 2005. Made in Brasil é um espetáculo no qual a imagem projetada (vídeo), a sonoridade (vocal e gravada), a ação e o movimento perpassam seus planos heterogêneos. Tiago me contou, numa entrevista realizada em 2005, que Nigel Charnok, ao ser convidado para dirigir o espetáculo, considerava o tema “Brasil” muito amplo, que era preciso partir de algo mais concreto. E o que tinha em mãos era uma dupla de artistas que vivem e criam juntos. Mas não versa a composição cênica sobre um possível “drama” de um casal, mas sobre uma carta que é rabiscada e redesenhada diversas versas. Há traços intensivos sobre o Brasil, como o vídeo mostrando uma paisagem contínua de paredes pichadas e som de cães latindo enquanto um casal realizada uma coreografia de contato físico sobre um monte de jornais. Ou em outros momentos, em que a realidade macabra da violência é desenhada cenicamente. Mas, o tempo todo, o espetáculo joga com a relação de continuidade e descontinuidade. Quando o significado vai se configurar numa identificação emocional, numa significação (fechamento do sistema), Nigel joga com o distanciamento, utiliza elementos de clown, interrompe para entrar com outro plano midiático (som, imagem etc.). O espetáculo flui, assim, entre performance, simulação, jogo, fantasia, projeção de imagens etc.

Tiago está com um novo espetáculo, agora de sua direção, trabalhando com outros performadores, no Bath Dance, intitulado ID, na qual aborda os instintos primais e os impulsos na busca da identidade. Ele continua seu caminho, num espaço entre dança e teatro: no qual o corpo é experimentado a partir de suas qualidades energéticas, como ele fez questão de frisar na entrevista realizada.


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EM BUSCA DO CORPO ANÔMALO

Num post, falei das visões de um corpo no chão. Jan Moura, da Confraria dos Atores, grupo teatral de pesquisa de Cuiabá, comentou o tema, lembrando o treinamento corporal de Eugenio Barba, mestre das composições que perfazem uma corporeidade exra-cotidiana. Coisas que são próximas e distantes. Atravessando a questão, volto à visão daquele post, em busca do corpo anômalo.

A distinção entre corpo cotidiano e corpo extracotidiano, é realizada por Eugênio Barba e demonstra que toda corporalidade é investida de uma segunda natureza. No caso da energia cotidiana, prevalecem os condicionamentos socioculturais, formando todo um modo sensoriomotor de sentir, perceber e se expressar. No sentido mais pragmático temos, entre outros traços, o de um mínimo de esforço para o máximo de rendimento. Isso quer dizer, também, que a leidos fins predomina sobre os meios. A orientação social e finalista é clara: se eu devo ir até a porta e abri-la para que entre alguém, tal ato não me pede mais do que o esforço mínimo e necessário para que a ação seja executada.

Já na energia extracotidiana, a ordem é invertida, havendo o máximo de esforço para o mínimo de rendimento. Ora, quando isso acontece, temos um dispêndio extra de energia, um dispêndio totalmente desnecessário do ponto de vista da funcionalidade da execução. Nesse caso, há uma corporalidade cuja presença se expande como luxo, para utilizar uma terminologia de Barba. Forma-se uma segunda natureza, mas que se recusa a atender às lei dos fins, tornando os meios, os percursos, as intensidades, como a modalidade de existência corporal.

Esse corpo extracotidiano será um corpo treinado, e, noutra perspectiva, poderia ser chamado de corpo-artista, para usar o termo criado por Christine Greiner (2005) para designar uma experiência em criação estética.

Um corpo artista possui habilidades ou treinamentos que o sustentam como tal, extraindo uma presença que se torna, como diz Barba, de luxo. Que corporalidade é essa? Poderíamos dizer que ela, ao se tornar presença, pode entrar sob regimes de signos não codificados.  Diria, por exemplo, que esta é uma perspectiva que foi bastante trabalhada por outro encenador, próximo de Barba (quando este se julga, sob certos aspectos, um discípulo seu), como Jerzy Grotowski. Há toda uma existência corporal para além dos limites impostos pela vida social, expressando-se principalmente nas situações-limite, de risco, de abandono de si. Posso dizer, então, que essa  corporalidade têm a potência e entrar em estados singulares e, acrescento, anômalos.

Você poderia concluir, então, que somente corpos treinados, às vezes sob modalidades quase secretas, de afastamento e negação dos contornos sociais e de suas premências, poderiam expressar tais estados singulares e anômalos. Porém, tenho insistido na existência de corporalidades que vivem tais situações-limite sem, contudo, serem corpos-artistas, ou seja, treinados. E acrescento, além disso, que os teatros pós-dramáticos e performativos, quando introduzem o real na cena (tudo aquilo que foi excluído do campo da percepção pelo teatro de ilusão), validaram as corporeidades não-artistas (não treinadas numa disciplina artística).

Assim como os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem que “a arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais”, também se pode dizer que a arte não espera o ofício da arte. A arte contemporânea não cessa de trazer à tona experiências corpóreas não restritas ao corpo artista, tomando este como habilitado pelos ofícios e treinamentos. Ou seja, outros corpos podem entrar na cena por uma via estética, isto é, em criação.

Busco obsessivamente a observação daquilo que chamo de corporalidade anômala, na trilha apontada por outro pensador, José Gil, numa apropriação do conceito de anômalo em Deleuze e Guattari (1997,b).

SÃO CORPOREIDADES OUTRAS, QUE O TEATRO DE REPRESENTAÇÃO NÃO PODE CONCEBER. Não porque seja pior ou melhor que um teatro não-representacional. Mas em função de cada um criar a sua própria paisagem. Você dirá: pode um teatro não ser uma representação? Teatro-fábrica em oposição ao teatro-interioridade: é essa distinção que se deve fazer, apesar das coisas serem, sempre, passíveis de todas as misturas.

O anômalo não é um categoria nem de indivíduo e nem de espécie. E também não se diz do anormal, mas antes do desigual (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Esses pensadores o conectam à multiplicidade e ao corpo atravessado por afectos: “é um fenômeno, mas um fenômeno de borda”.

A questão passa a ser: como um corpo-artista pode produzir uma corpo anômalo?

Referências

DELEUZE, G. E GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
GIL, José. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Anna Blume, 2005.
DRAMATURGY BEYOND REPRESENTATION:TEXTS, BODIES, SPACES IN CONTEMPORARY EUROPEAN THEATRE

Um corpo (que) não representa

A associação entre teatro e representação é uma relação de conjugues. Dissociar essa correspondência tem sido uma tarefa a que venho me dedicando.

Passei a invocar a potência de um corpo que não representa. Uma abertura proporcionada por experimentos cênico-corporais (teatros físicos, pós-dramáticos, dança contemporânea) e pela performance art, incluindo o campo da body art.

Algumas características da representação:

1. Opera com o binarismo forma e matéria, significante e significado. Há sempre algo que remete a algo. A coisa como tal, como se apresenta, não conta. Ela é um suporte para uma significação. Um corpo nunca é um corpo: ele deve representar alguém ou algo.

2. Tem na cena ilusionista sua expressão maior. O teatro do século 18, com a definição da quarta parede, onde os atores estão em outro plano, que não o dos espectadores, é seu rastro mais evidente. Ismail Xavier, analisando o olhar e a cena, cita Roland Barthes, para quem o teatro é o “lugar calculado”, a partir do qual as coisas podem ser observadas.

Cria-se, portanto, um sujeito que mira numa direção (a perspectiva resulta desse lugar preciso), cortando uma superfície, formando um cone do qual o seu olhar é o vértice. Esse sujeito, localizado e pontual, pode representar o mundo por esse teatro, no qual o observador encontra-se separado do observado, mantidos os seus limites. ´

3. A representação tem por corolário a interiorização. Trata-se do mito do fantasma na máquina (uma mente que habita num corpo), criado por Descartes e que foi desmontado pelo fiósofo analítico Gilbert Ryle. Seu livro, The Concept of mind, é hoje um clássico dessa desmontagem da noção de mente como interiorização.

Dito tudo isso, o que acontece quando um corpo deixa de representar?

Adentramos num deserto onde somenta conta a sensibiidade, para pensar com Melevich, no seu Manifesto Suprematista:

“A escalada ao cume da arte não-figurativa é difícil e atormentada…, mas ainda assim satisfatória. As coisas habituais vão recuando pouco a pouco, a cada passo que se dá os objetos afundam um pouco mais na distância, até que, finalmente, o mundo das noções habituais – tudo o que amamos e a que ligamos nossa vida – se apaga completamente.Basta de imagens da realidade, basta de representações ideais – nada mais que o deserto!”

Se o objeto (corpo) deixa de representar, isto não significa uma volta ao binarismo, ou à sua exclusão da arte. Pelo contrário, o objeto volta com os ready made de Duchamp. O encenador polonês, Tadeusz Kantor, que correspondia com Duchamp, foi um dos que inventou um novo plano cênico no qual essa oposição já não mais conta: a volta do objeto pobre.

A minha primeira rebelião em relação à representação deu-se no exercício de Arte-Educação, observando o brincar da criança pequena. Um menino que “monta” num cabo de vassoura não está, ao contrário do que acreditam cognitivistas, gente de teatro e educadores, representando um cavalo. Ele vive a experiência corporal de ser conduzido por um objeto: são as sensações que conta, no caso.

E o “cavalo”? Por que, então, o menino brincaria de “montar cavalo” com um cabo de vassoura? Deleuze, em Crítica e Clínica, abre um plano diverso do plano das representações, no qua se faz possível ver o movimento do menino como mapa, como cartografia intensiva: “os dois mapas, dos trajetos e dos afectos, remetem um ao outro.” Ou seja, o “cavalo” é um mapa do trajeto movimento-cabo de vassoura (ou bastão).

Isso mudou minha visão em Arte-Educação. Rompi com os programas de jogos teatrais. Comecei a ver o mundo com outros olhos. Deu-se a emergência de corporeidades que fizeram fugir a representação.

Para dar um só exemplo, passei a pedir aos atores, nos exercícios de improvisação (que chamo de física e experimental): aí está uma cadeira, trabalhe com ela sem representar.

Uma arte que começa por aí.

Bibliografia:

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
RYLE, Gilbert. The concept of mind. Chicago University Press, 1984.
XAVIER, Ismail – O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naif, 2003
Confira também trechos do Manifesto Suprematista, de Malevich, no bloco de notas do site de Dudude Herrmann: http://www.dududeherrmann.art.br/