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Intervenção cênico-urbana: um relato

Relato aqui uma intervenção cênica nos espaços urbanos, com atores sem formação sistemática e acadêmica em teatro.

O relato fala da transformação de um grupo de atores populares, sem formação técnica em artes cênicas, em performers físicos, que utilizaram alguns elementos de improvisação física tanto no ensaio quanto na apresentação. Eles continuaram realizando seus trabalhos, mas se permitiram, num determinado momento, realizar uma performance na rua, completamente fora dos parâmetros com os quais trabalhavam. Quando falo de transformação, falo da mudança de agenciamento cênico espetacular em que eles entraram:

Um grupo de artistas, sem formação técnica e acadêmica na área cênica, iria se apresentar num evento cultural. Trabalhavam nos dias de semana, a maior parte deles, como porteiros de prédios públicos e, nas horas vagas, realizavam shows de palhaços. Apresentavam um esquete, cuja base de atuação era histriônica, com uma presença cênica muito grande, conseguindo segurar a atenção das pessoas na rua: brincavam de fazer entrevistas com uma câmera de papelão, sendo que um deles, um dos mais histriônicos, fazia o papel da jornalista. O público, nas ruas, ficava eletrizado.

Propus a eles que, além dessa cena, realizassem um trabalho completamente diferente do que, até então, vinham fazendo. Sem mais nem menos eles aceitaram. Havia pouco tempo: quatro encontros, uma vez por semana à noite, após os seus horários de trabalho. A proposta consistia em: “cinco homens sentados em cadeiras na calçada de uma rua bem movimentada, por volta das 13 horas, sem fazer nada. Este “sem fazer nada” já era uma estratégia minha para que não contassem com as ações histriônicas, com as interpretações, com os estados emocionais, etc. A situação já falaria por si só, disse a eles, não seria preciso atuar, fingir, representar. Não se pretendia, além disso, construir uma história a partir das caracterizações. Se houvesse uma ficção, disse a eles, estaria antes na cabeça das pessoas que iriam passar pelo local.
Qual foi o procedimento inicial? Treinar em não fazer nada. Posso dizer que grande parte do tempo foi gasto precisamente nisso: não fazer nada. Ora, isso é muito difícil. Principalmente devido à visão que o grupo possuía de teatro, de espetáculo, não diferindo muito da que se encontra em outras esferas, com a diferença de que eles não se sentiam ameaçados (pelos menos não pude perceber isso) e entregavam-se totalmente ao jogo a que se propunham. Deparei-me com excelentes cômicos.

Não havia tempo para exercícios corporais: a composição era imediata – como a situação era minimalista, o tempo era todo nosso. Utilizei, apenas, o exercício de ficar de pé e respirar, sentindo os apoios. Depois, modos de chegar até as cadeiras. Propus que, no início, eles utilizassem seus narizes de palhaço. Depois, eles os tirariam. Mais adiante, trabalhamos com os modos de se levantar e a relação que surgia entre eles. E improvisamos com isso.
O que se pedia: conexão total e máxima entre eles, de modo que, cada movimento, por menor que fosse, afetasse todos. Busquei o patético que se revelava por si só: cinco homens, de roupas sóbrias (calças e paletós simples), sentados em cadeiras idênticas, na calçada de uma rua movimentada: isso já era informação demasiada. O que estava em jogo, portanto: perceber-se, perceber o outro, estabelecer alguns padrões de linha (as cadeiras enfileiradas uma ao lado da outra já proporcionavam isso), atenção plena.

Fomos para a rua. Havia uma estrutura básica, incluindo alguns movimentos em uníssono, sendo que, no meio, as improvisações ocorriam. Em alguns momentos, um deles disparava uma seqüência de movimentos, num misto de coisas criadas anteriormente e inventadas na hora. Havia sim um jogo, mas sem regras determinadas, a não ser a de se perceberem o tempo todo. Uma pequena seqüência coletiva de movimentos, cada um diante de sua cadeira, com ampla visibilidade, foi utilizada, a que eles recorriam por grandes intervalos de tempo. Eram movimentos de aquecimento, pequenos pulos no mesmo lugar, nas quatro direções. O resto era improvisação.

As reações foram colhidas por mim e por algumas pessoas que nos ajudavam. As falas fornecem um sentido de indiscernibilidade, que é justo o que se pretendia.
Dois adolescentes: “Olha velho, você disse que eles são loucos, não são loucos nada… Isso é teatro…” E o outro: “E o que é loucura para você?”
Uma senhora: “Será que eles são evangélicos?” Dois idosos: “Isso é teatro sim, olha lá.” O outro responde: “Mas não é daqui do Brasil não. Eles importaram esses caras aí para fazer isso…”

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De artistas cortesãos e artistas supliciados

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”