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Niilismo em Nietzsche, por Gérard Lebrun

Imagem: LCG

“Hoje não é mais possível reinventar o ‘mundo-verdadeiro’ tal como ele teve vigência, quanto mais não fosse porque não conseguiríamos disfarçar por muito tempo o fato de que, precisamente, ele estaria sendo re-inventado – e por isso a instauração ou restauração de um Saber Absoluto só pode ser um logro. Mas a que se deve que os filósofos consigam conservar, com tanta obstinação, sua nostalgia do ‘mundo verdadeiro’? É esta, para Nietzsche, uma das numerosas forms do que ele chama de ‘niilismo incompleto’, isto é, uma forma dentre outras de fugir da ideia de que todo sentido pode ser, simplesmente, produto de uma avaliação, de uma criação. Esta ideia, sacrílega por excelência, tem de permanecer impensável – e todas as formas do ‘niilismo incompleto’ não passam de tentativas para a evitar. Até o mais fanfarrão dos niilistas prefere se resignar à constatação de uma falta de sentido; prefere proclamar que verdade não há, deixando assim implicitamente intacto o ideal de ‘verdade’ – esse ideal ao qual o racionalismo quer dar um conteúdo. Mas, entre um e outro, a diferença será tão grande? Na verdade, é niilista – ‘niilista incompleto’, é verdade, e não ‘niilista forte’ – quem ainda não põe em questão o ideal de ‘verdade’. Quem ainda se recusa a denunciar como impostura a ideia de existir um horizonte de sentido prévio a qualquer avaliação. Quem ainda não recusa o princípio mesmo de um Logos não criado que possa proporcionar abrigo e proteção aos homens.”

Gérard Lebran, in O Avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.143-144

 

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Nietzsche por Deleuze: crítica e valores

Broken Dreams
Imagem: Tomás Rotger

 

“O projeto mais geral de NIETZSCHE é introduzir na filosofia os conceitos de sentido e valor, fazendo com isso da filosofia uma crítica. Modernamente, a teoria dos valores engendrou um novo conformismo e novas submissões. Para NIETZSCHE, entretanto, a filosofia dos valores é a única maneira de realizar a crítica total. A noção de valor implica uma inversão crítica: por um lado, as avaliações supõem valores anteriores; por outro lado e mais profundamente, são os valores que supõe avaliações, donde deriva seu próprio valor. O problema crítico é esse: o valor dos valores e, portanto, o problema da sua criação. A avaliação, elemento diferencial, é simultaneamente crítica e criadora. As avaliações não são valores, mas maneiras de ser que servem de princípio aos valores em relação aos quais julgam. Eis o essencial: o elevado e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento diferencial donde deriva o próprio valor dos valores.

A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: referir as coisas à valores e referir esses valores a algo que seja como a sua origem e decida sobre o seu valor. NIETZSCHE coloca-se portanto tanto contra os que subtraem os valores à crítica (ou fazem a crítica em nome de valores estabelecidos e ‘intocáveis’) quanto contra os que fazem a crítica derivar de pretensos fatos objetivos (utilitaristas), ambos nadando no elemento indiferente do que vale em si ou do que vale para todos.  NIETZSCHE insurge-se contra a elevada idéia de fundamento que deixa os valores indiferentes à sua origem e contra a idéia de uma simples derivação causal, indiferente, dos valores a partir de sua origem. Daí o conceito novo de genealogia, que aposta no sentimento de diferença ou distância, diferentemente do princípio da universalidade kantiana (ou do útil). (…)

Sua crítica é ao mesmo tempo o elemento positivo de uma criação. Por isso a crítica não é REAÇÃO, mas AÇÃO; a crítica opõe-se à vingança, ao ressentimento. É a expressão ativa de um modo de existência ativo, a maldade que pertence à perfeição. Essa maneira de ser é a do filósofo.”

Gilles Deleuze: Nietzsche e a Filosofia –

Referências –

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de António M. Magalhães. Porto: Rés Editora, s/d.


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Viroid life: memória e devir

groundfloor

Imagem: Ground

“O fenômeno da memória é múltiplo: poderia ser chamado de memórias moleculares, memórias sociais, memórias curtas e memórias longas, memórias absolutas e relativas, memórias doentes e memórias saudáveis, de mnemotécnicas e de invenção de uma memória intensiva, e assim por adiante. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari opõem devir e memória na tentativa de construir um modelo de evolução não-genealógico (numa evolução que não seria restrita ao esquema linear pressuposto na árvore da vida). E nessa perspectiva, eles entendem que as memórias moleculares ou minoritárias existem numa integração no sistema molar, ou majoritário (Deleuze e Guattari 1988:294 – páginas da edição inglesa). O fato de Deleuze e Guattari subestimarem o poder criativo e subversivo da memória tem a ver com o modo como esta se associaria às técnicas mnemônicas (ibid.: 295). Nessa perspectiva, a memória funcionaria como uma organização pontual, na qual o presente refere-se simultaneamente a uma linha horizontal que captura o fluxo do tempo, movendo do presente antigo para um presente atual, e a uma linha vertical que captura a ordem do tempo, indo do presente para o passado, ou para a ‘representação’ do presente antigo. Os autores opõem os ‘sistemas multilineares’ aos sistemas pontuais, sendo que os primeiros, que são sistemas complexos e abertos, tão evidentes no trabalho dos músicos e pintores, nos quais temos a liberação da linha, fazendo-a numa diagonal, e não mais numa verticalidade e horizontalidade.

Neste sentido, em que a linha se sobrepõe ao ponto, os autores colocam que todo ato de criação é, em última instância, ‘trans-histórico’: ‘criações’, escrevem, ‘são como linhas abstratas e mutantes que abandonam por si mesmas a tarefa de representar um mundo, precisamente porque elas configuram uma nova realidade que a história pode somente recontar ou recolocar em sistemas pontuais’ (ibid.: 296). Nesse modelo, os devires tomam um lugar na história, mas nunca se reduzem a ela:  ‘Quando isso ocorre [o estancamento da linha] é sempre submetido à História, mas nunca a partir desta (ibid). A História, para Deleuze e Guattari, é uma definição molar. A única história que se faria possível seria a que sempre tem sido e para sempre será – a história do homem (embora se deve notar que os autores preservam os ‘múltiplos devires do homem, mas nenhum devir-homem’). Para eles, as técnicas de memória têm sido cultivadas com o objetivo de servir à molarização da história. Mas, onde a memória fixa codifica, e assinala funções, a atividade dos devires torna-se liberadora por um rebatimento no jogo transversal da comunicação entre fenômenos heterogêneos, de tal modo que eles criam genuinamente o novo e a diferença.

(…)

Encontramos nas colocações de Deleuze sobre a teoria das duas memórias, que aparece tanto em Freud quanto em  Nietzsche (Deleuze 1983:115). A primeira é uma memória específica do homem ressentido, na qual  os traços da memória tornam-se tão indelevelmente marcados na sua consciência que ele já não é capaz de agir (que exige  esquecimento). Não se trata apenas do caso de que sua ação é apenas reação, mas sim que ele é incapaz de agir, pois mesmo fora da reação ele se sente reagindo, tornando interminável (indigerível) o processo. A segunda é uma ‘memória ativa’,  ‘que já não repousa sobre os traços mnemônicos (Deleuze 1983:112-15). Aqui memória já não é simplesmente uma função do passado, uma incapacidade de fluir, transformando-se antes  numa atividade do futuro, uma ‘memória  que é própria do futuro’ (ibid.: 134). Reinterpretar a memória humana, alguém poderia sugerir, envolveria  traçar uma evolução ou transformação daquilo que não pôde entrar na consciência contemporânea, numa busca dos vestígios ‘sígnicos’ do além-do-homem, em que a memória humana nos libertaria de nossas feridas purulentas, do  desprezo e da comiseração que percebemos no rosto da humanidade. “Uma investigação sobre a ‘origem’ é, portanto, sempre uma investigação sobre o devir-futuro e sobre os devires do futuro.”

Ansell Pearson – Viroid life: perspectives on Nietzsche and transhuman condition. Routledge, 1997.

Mais referências –

Viroid life no Google Books

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Blanchot: pensar a força

Imagem: obra de Kandinsky

“… se a ‘força’ exerce sobre Nietzche a atração que também lhe repugna (“Ruborizar-se com o poder”) é porque ela interroga o pensamento em termos que irão obrigá-lo a romper com sua história. Como pensar a ‘força’, como dizer a ‘força’?

A força diz a diferença. Pensar a força é pensá-la por meio da diferença. Entenda-se isso inicialmente de um modo quase analítico: quem diz a força, di-la sempre múltipla; se houvesse unidade de força, não haveria força. Deleuze exprimiu isso com uma simplicidade decisiva: “Toda força está em relação essencial com uma outra força. O ser da força é plural, seria absurdo pensá-lo no singular.” Mas a força não é apenas pluralidade. Pluralidade de forças quer dizer forças distantes, relacionando-as umas às outras pela distância que as pluraliza e que as habita como a intensidade de sua diferença. (“É do alto desse sentimento de distância”, diz Nietzsche, “que nos arrogamos o direito de criar valores ou de determiná-los: que importa a utilidade?”). Assim, a distância é o que separa as forças, é também a sua correlação – e, de maneira mais característica, é não apenas o que as distingue de fora, mas o que de dentro constitui a essência da sua distinção. Dito de outro modo: o que as mantém à distância, o exterior, é sua única intimidade, aquilo pelo qual atuam e se submetem, “o elemento diferencial” que é o todo de sua realidade, não sendo portanto reais senão quando não têm realidade em si próprias, mas somente relações: relação sem termos. Ora, o que é a Vontade de Potência”? “Nem um ser, nem um devenir, mas um pathos”: a paixão da diferença.

Maurice Blanchot

Blanchot, Maurice. Reflexões sobre o nilismo, in A conversa infinita – vol. 2. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007.

Imagem: Kandinsky

Mais referências:
Site Maurice Blanchot (e seus contemporâneos) – em francês
Espace Maurice Blanchot – em francês e espanhol
Espaço Maurice Blanchot – português
Enigmatic French writer committed to the virtues of silence and abstraction. The Guardian. Obctuary
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.