Site de Katie Duck: dança improvisacional

Katie Duck, performer de dança improvisacional e coréografa colocou no ar seu novo site. Katie esteve no Brasil em diversas ocasiões ministrando oficinas de improvisação e composição. No site há textos que abordam desde aspectos da história da dança contemporânea, na conexão Reino Unido/EUA, até informações sobre os procedimentos compositivos de Katie Duck. Chamo a atenção, particularmente, para um vídeo em que ela dança uma suite de Bach: sobriedade de linhas e precisão.

Alguns podem pensar que os procedimentos compositivos de dança pesquisados por Duck são utilizáveis somente em dança – grande engano. Até porque, numa perspectiva de obras híbridas e espaços entre, não se trata mais de pensar em linguagens isoladas. São poéticas do movimento-corpo-som-imagem.

Para as minhas pesquisas de treinamento em e como criação, extraio dos toques de Katie, dois procedimentos básicos, entre outros: a) aprender a compor através do sair, do deixar, do retirar-se do jogo cênico; b) a distinção entre escolha (choice) e acaso (chance). Não se trata de regras e improvisação – porque, aqui, estamos não no campo da estrutura, mas das forças em interação. São procedimentos técnicos que impulsionam os peformers da criação corpórea a um exercício sóbrio e livre ao mesmo tempo. A precisão é o intervalo de uma velocidade e não uma coisa dada e conferida por alguma autoridade (estética ou que seja).

A utilização de acasos (ecos de Cage) aparece, ainda, como ferramenta importante para a improvisação. No entanto, em busca da mudança, que é necessária, passamos a fazer escolhas sem a criação de um plano de imanência: um plano de escuta do espaço da atuação. Por outro lado, Duck mostra que, paradoxalmente, somente podemos ter acesso aos acasos através de escolhas. Mas, ainda, trata-se de perceber o que está emergindo no campo.

E no caso de compor com a saída, este é um exercício de grandes potencialidades. Os performers aprendem o desapego e, o que é vital, o retorno para o vazio.

Assimetria

Andando a esmo por textos esparsos encontrei um pensamento, incompleto mas provocador, a respeito da improvisação.

Trata-se do conceito de assimetria, que surgiu no contexto de um exercício improvisacional. No caso, dois performers físico-experimentais (cujo discurso cênico é a própria materialidade cênica), dividiriam, como ponto de partida, o espaço cênico em duas partes. Trata-se de um exercício compositivo em que cada um procura dialogar fisicamente (através do corpo, tempo e espaço) com o outro. Surgiu, nesse exercício, o pensamento sobre a seguinte questão: simetria e assimetria.

A questão passa a ser esta: o exercício se dá em bases simétricas ou assimétricas? Obviamente, aventa-se o exercício da assimetria.

A simetria é uma busca da segurança, da afirmação equilibrada segundo a justa distribuição, idealmente concebida como o meio dividido em duas (ou mais) partes iguais, com pesos respectivos e correspondentes. Pensamento clássico em termos de criação.

O simétrico possibilita uma comunicação em termos da ação: ao fazer o que ele faz em meu campo, busco uma sintonia, a afinação para estabelecer as bases sensoriais/perceptíveis do diálogo.

Comentário: Atuar em uníssono provoca uma sinergia, um contato. Não seria essa uma modalidade de simetria? Entendo que, se a improvisação é simétrica, nada mais acontece. Na composição, a simetria é uma ordem racional. Ela diminui o campo de percepção (dos performers entre si e do público também), pois é totalmente previsível. A assimetria, ao contrário, provoca novas percepções.

Da assimetria surge outro plano: não mais o equilíbrio da totalidade dividida em partes iguais – um tipo de concepção de justiça – mas a diferença ao lado, reivindicando com base na serialiedade das correspondências, em vários tipos de montagens disponíveis. Séries desviantes.

Uma justiça em desequilíbrios constantes, cuja estrutura é vazia, onde o campo sempre se modifica.

Mas uma justiça de outra ordem: ora clama uma dor singular, ora uma oposição polarizada, uma ausência ou uma fala que não se diz, ou outras vias de negação, para afirmar de todo jeito o primado da diferença sobre a identidade.

A assimetria não será a simetria em níveis mais profundos, como o quer (secretamente) a dialética, passando pela afirmação, negação e superação das oposições, subsumidas a um ordem superior. O contrário disso: o que se faz assimétrico não busca leis de negação e identidade. É diverso.

Trata-se de uma justiça que incorpora a tortuosidade dos acasos, sem progresso acumulativo, ascencional.

O exercício improvisacional dos dois performers (ou mais, se quiserem): uso do uníssono como possibilidade de conexão, de impressão sensorial, mas produzindo séries assimétricas, divergentes e desviantes.

Improvisação e experimentação – De Cage a Kandinsky

Tenho reivindicado uma pesquisa em criação cênica na qual a improvisação entra numa zona de indiscernibilidade com a experimentação.

O que muda?

Como experimentação, a improvisação deixa de ser apenas uma ferramenta para a busca de materiais novos para a criação cênica. Nâopassa também a ser um espetáculo/performance na qual os atuantes criam/improvisam diante do público, com ênfase nas decisões tomadas. Katie Duck, performer de dança improvisacional, radicada na Holanda, aponta para esse caminho ao dizer que lhe interessa não uma estética de decisões mas sim de acasos, tomando por base as operações de acaso de John Cage.

A improvisação experimental expôe, portanto, os acasos que emergem num campo de percepção compartilhado entre público e performers.

Trata-se antes da fabricação de uma zona de indeternimação na criação cênica (emergência de acasos no campo de percepção da cena), mais do que de improvisação pura (exposição das decisões dos performers diante dos problemas colocados), que podem ser trabalhadas com ações previamente definidas e outras que não o sejam. A artista e pesquisadora cênica, Sara Rojo (UFMG), no debate de minha dissertação de mestrado sobre o tema, nomeou essa possibilidade improvisacional como sendo um lugar em que ocorrem ações pautadas e não pautadas.

No entanto, apenas ressalto que, numa visada experimental as ações pautadas nunca poderiam ser totalmente pautadas, pois, na esteira de John Cage diria, o lugar da performance não é determinado. Ou seja, ocorrerão coisas que serão, num nível macro ou num nível micro, impossiveis de serem previstas. Assim, a impovisação experimental se define por uma fabricação de zonas de interminação.

A que responde essa necessidade de criação?

A improvisação como experimento instaura seu plano próprio de criação estética por ser um elemento configurador de uma nova atitude dos indivíduos frente ao caos da vida cotidiana.

Tomo como guia, nesse aspecto, Kandinsky, no livro Ponto e linha sobre plano , um manual, para mim, de pesquisa cênico-corpórea. Tomo, a partir de suas colocações, que a incerteza pode deixar de ser uma catástrofe somente, uma injustiça proveniente do acaso, para ser um modus vivendi de indivíduos e grupos que adotam, portanto, não a obra, mas a atitude estética numa relação em que se esmoronam as fronteiras entre arte e vida.

A partir das formulações da nova física, da teoria do caos, do incremento da complexidade, da influência de ataques silenciosos como o zen-budismo na sua ênfase na indeterminação, na incoerência e ilogicidade (os koans, a atitude não-livresca e não dogmática), tendo na surpresa o elemento de compaixão e amorosidade em relação ao outro e ao mundo (improvisação como ato de surpreender a si e o outro para doação da dinâmica viva da vida).

Não é sem isso que John Cage, que apesquisa cênico-experimental a que venho me dedicando elege como intercessor, toma o zen-budismo como inspiração máxima. A importância de Cage é ímpar, não só pelas formulações prático-poéticas a que chegou, mas também pelas sua investida na atitude de collage, na pesquisa também com os environments, na sua pesquisa com Merce Cuningham, um dos expoentes da dança pós-moderna, na sua influência determinante no campo da dança improvisacional e nos métodos compositivos. A improvisação, no contexto dessa investigação, é tomada como atitude que incorpora o acaso e o acidente não como provocações externas, mas como automotivadas ocorrências, a que alguns artistas tomaram como atitude a se expandir como aprendizado para a vida, no sentido de estar preparado para um mundo de incerteza, que passa a ser visto, portanto, sob uma nova ótica.

Kandinski – que havia criado vários trabalhos com o título Improvisação – coloca-nos diante do acaso, de duas atitudes diante que ele chama de “choque externo” e de “choque interno”, respectivamente:

“os choques externos (doença, infelicidade, tristeza, guerra, revolução) arrancam-nos à força por um tempo mais ou menos longo do círculo dos hábitos tradicionais, mas eles são sentidos, em geral, como uma ‘injustiça’ mais ou menos grave. Então o desejo predominante de reencontrar o mais depressa possível o estado perdido dos hábitos tradicionais prevalece sobre qualquer outro sentimento”.

Para Kandinsky, “os abalos provenientes do interior” são criações huamanas e, por isso, encontram um campo em que podem ser vividos de outro modo, que não o de uma injustiça. A atitude – e a palavra é esta – se propõe a ser frágil, a ir-à-rua, em vez de observar pela janela:

“O olho aberto e o ouvido atento transformam as mais ínfimas sensações em acontecimentos importantes. De todas as partes afluem vozes e o mundo canta.”

A última frase poderia ser atribuída a John Cage em sua aproximação arte-vida. Um modo que pode ajudar a entender o papel da arte frente aos abalos da vida. Uma perspectiva afirmativa – no qual a vitalidade e a potencialização da vida tornam-se fatores determinantes. Mesmo diante das catástrofes.

KANDINSKY, Wassil. Ponto e Linha Sobre Plano: contribuições à análise dos elementos da pintura. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1977.