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Um corpo que faz mapa: iluminações avulsas I

 

 

 

 

 

 

Como o corpo se faz num fenômeno de borda e produz uma cartografia?

Há corpos que não passaram por qualquer formação artística e que, no entanto, vivem estados de poesia. Estão fora dos regimes de significação habituais, constituindo antes fenômenos de borda.

Vejo um senhor negro que aguarda no ponto de ônibus, logo na subida da favela. É começo de noite e as pessoas se deslocam pesadas, de volta do trabalho para casa. O  homem que observo é pobre. Porém, ele  se veste com dignidade (é preciso dizer disso numa paisagem como a nossa, brasileira): camisa branca e social, calça e sapato. Contudo, percebo logo que seu trajeto não cumpre a função das outras pessoas que posso observar naquele horário, como a volta do trabalho para casa ou qualquer outra, mas está numa borda que eu não consigo definir.  

Visões de um corpo no chão

Man Dog – Francis Bacon (1953)

Hoje eu vi Geraldo estendido no chão, o violão em cima do peito, os braços abertos, o sorriso solto. Estava completamente bêbado.

Geraldo é pobre, anda pelas ruas tocando um violão desafinado, meio quebrado. Dizem que tem casa. E está sempre bem vestido. A cada dia, um paletó diferente. As calças sempre com as braquilhas quase abertas. Numa das mãos leva sempre um saco de plástico com roupas ou comida. Pede dinheiro, comida, qualquer coisa. Diz que tem muitas mulheres e fala um tanto de coisas sobre elas, coisas que não dá para contar aqui.

Isso tudo me remete sempre ao teatro. A um teatro corporal. O que quero dizer com isso? Uma volta a um corpo que invade os sentidos antes que você represente qualquer coisa.

Não organiza potências de criação saber de onde vem o teatro – qual sua origem. Fernando Pinheiro Villar, encenador e pesquisador, mostra que a relação de causalidade na história é sempre uma ficção construída – são histórias sempre parciais. Em relação à História do Teatro, Villar observa que suas narrativas viraram as costas para muitos aspectos da criação cênica, o que ele chama de uma “história mal contada”. Mas o que pode ser interessante: captar o momento em que o corpo é o próprio discurso cênico e o momento em que apenas se comporta como um significante para um significado ulterior.

Os bêbados que vão ao chão: eles criam outro plano para a existência dos corpos. Ainda não são corpos totalmente acidentados. E costumam fazer graça, rir de quem passa… Ou, ainda, chorar. Lembro-me do primeiro bêbado que vi na minha infância, por volta dos meus 06 anos de idade. No nordeste de Minas, vi o homem que cuidava de vez em quando da minha casa, que ajudou no meu aniversário, deitar na lama, numa tarde de estio. Vi o branco de seus olhos e o céu azul que ele apontava.

Que o ator seja um bêbado. Que estenda-se no chão. Mas que isso não seja uma representação de um bêbado. Interessa, então, um corpo que desiste de ser funcional. Ou que não pode sê-lo por um instante que seja. Ou que aconteça de ser surpreendido.

Você surpreende seu corpo? Seu corpo surpreende você?

Os bêbados. Com eles o mundo gira. Uma grande lição para atores físicos, corporais. Que não queiram interpretar papéis. Há atores geniais que fazem isso. Como Clarke Glabe, em Desajustados, último filme de Marylin Monroe, rodado em 1961, com direção de John Huston e roteiro de Arthur Miller. Ele se comporta com toda a elegância de um galã em quase todo o filme. Está sempre de pé. Num momento, ele cai, despenca, vocifera e chora. Uma grande cena. Uma grande interpretação. Mas eu falo de um estado não-representativo. Falo de estados em que não há mais nada a fazer.

Não se trata do bêbado engraçado. Ou da graça de um bêbado. Trata-se de uma situação humana em que já se jogou na lama. Há um teatro que busca os corpos em estados anômalos. E não pensem que isso é produzido por um desejo de imitação, mas uma espécie de rito, de travessia de um corpo na barca cuja luz oscilante a morte empunha.

Geraldo, hoje, trouxe essa imagem na sua corpografia. Deitado no chão, ele sorria para todo mundo. Há algo de sinistro nisso.