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Assis Valente: felicidade é brinquedo que não tem…

 

Então, é Natal. Não fosse a cisão que atravessa nossas sociedades (de mercado), seria um ritual ou um costume, ou algo assim. Mas não é disso que se trata. Comemora-se, não se sabe bem o quê… Nem todos os grupos humanos comungam com a ideia de Natal, mas quase todos estão submetidos à civilização ocidental-cristã e suas mutações. Por exemplo: uma comemoração religiosa transformar-se num grande mercado mundial!

As  músicas natalinas tornaram-se um dos subprodutos dessa hegemonia. Porém, nem sempre os requisitos da encomenda, entre eles o de embalar as consciências, foram atendidos. Assis Valente, o pré-socrático do morro, como dizia Jorge Mautner, fez outra coisa, completamente diferente: abriu a nossa ferida. O genial compositor que tentou suicídio três vezes e viveu oprimido pela sua ambiguidade sexual, apaixonado por Elvira Pagã e depois por Carmem Miranda, compôs sua canção natalina, fugindo dos estereótipos:

Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
 
Brincadeira de papel
 
Já faz tempo que eu pedi

Mas o meu Papai Noel não vem 
Com certeza já morreu

Ou então felicidade 
É brinquedo que não tem

Quando eu era menino, eu ouvi isso no rádio e, pela primeira vez, percebi que o Natal não era para todos… O rádio era assim, conectava-nos com um ausente-presente, introduzindo uma voz na paisagem do interior de Minas Gerais. Aquilo mexia comigo. O drama sacudia o universo da vida comum, desequilibrando o céu que nos protegia.

Em outras palavras, Assis Valente expõe nossas delusões,  para fazer uma conexão com o Budismo.

Assis, o Valente, cortou os pulsos e não conseguiu morrer, pulou do Corcovado e ficou enganchado numa árvore. Por fim, numa tarde de 1958, tomou formicida com guaraná, ao lado de crianças que brincavam ali perto, na Praia do Russel, Rio de Janeiro.

Augusto de Campos montou o seguinte paradoxo para falar de Assis Valente e de sua obra: o felicídio da suicidade. A poética nem se ampara num sentimento e nem retrata objetivamente o real, produzindo antes o impensável (na trilha de Deleuze). Se fosse a felicidade do suicídio ou o suicídio da felicidade teríamos dois retratos, um subjetivo e outro social. Ou, dito de outro modo, um niilismo e uma sociologia. Mas o paradoxo faz coexistir, num mesmo plano, os heterogêneos.

O Valente Assis viveu a plenitude do paradoxo. Que não tenha sobrevivido às suas questões, não é um julgamento, mas a constatação de que os seus tempos foram difíceis e muitas vezes há o suplício misturado ao canto. A vitoriosa Carmem Miranda, que se incomodava com a acidez e com a ironia lúdica dos versos de Assis, no momento de sucesso nos EUA, também foi ao chão, dia após dia, explorada pelo próprio marido e produtor.

Nem niilismo romântico e nem objetividade discursiva nos salvará – talvez essa seja uma das mensagens de Assis, o Valente. Aliás, um dos versos mais geniais é puro paradoxo-zen:

“sapateia na poeira sem pena
sem dó
a poeira é aquele que sapateou até virar pó”
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Boas Festas na voz de Carlos Galhardo: