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Política pública de cultura como política de Estado

Joseph Beuys - A Matilha, 1969

 

Política pública: de conjuntura ou estruturante

Uma discussão que alguns movimentos, coletivos e indivíduos têm reiteradamente agendado, na área das políticas públicas de cultura, refere-se à distinção entre Políticas de Governo e de Estado.  Contudo, há quem acredite que as duas se equivalem. Mas o efeito prático de algumas ações, como a Lei de Fomento do Estado de São Paulo, e numa escola mais ampla, a agenda da gestão Gilberto Gil-Juca Ferreira no Minc, mostram que são coisas distintas, apesar de pertencerem à mesma lógica. E nessa linha, algumas  questões se colocam: sobre as relações entre Estado e Sociedade e sobre os modos de apropriação da esfera pública.

Enquanto a Política de Governo se articula em função de conjunturas,  uma Política de Estado propõe-se em ações de cunho  mais estruturante. Nesse último caso, os governantes, que se alternam no poder, estão obrigados a cumprir com determinadas linhas, programas e projetos. E mais do que isso, os governos têm de estabelecer conexões mais democráticas, além da mistura de instâncias técnicas e participativas, com pontos de vista mais amplos. 

O Legislativo passa  desempenhar um papel muito importante. E também as dinâmicas da sociedade, que estariam se mobilizando para garantir prioridades etc. Esse processo pode, por sua vez, ser motivado pela própria esfera governamental, envolvendo Fóruns, Conferências e Conselhos de Cultura. Ou ser agendado pelos próprios movimentos, junto ao Legislativo etc. Nessa acepção, o Estado não se reduz ao executivo.

A falta de continuidade dos programas e projetos entre as gestões que se sucedem é um dos exemplos das limitações das políticas públicas meramente governamentais. Além disso, uma política pública não pode depender exclusivamente da boa vontade dos que estão no comando da ação. Por isso e muito mais, os movimentos procuram ir além dos fatores de conjuntura, exigindo uma ação mais estruturante.

Cultura: sua força e sua fragilidade

A gestão de Gilberto Gil-Juca Ferreira no Minc é um dos exemplos de uma ação, ao mesmo tempo visionária e estruturante, de uma Política de Estado. E numa perspectiva radicalmente outra, envolvendo a participação ativa da sociedade civil, num processo inclusivo de abertura à diferença, à diversidade e à multiplicidade. No entanto, no campo da cultura, toda estruturação parece ser bem mais frágil. Apesar das conquistas, percebe-se, pelo menos no nível da participação, um grande retrocesso da atual gestão do Minc, no governo Dilma.

A cultura é o espaço privilegiado de invenção e produção de processos de subjetivação.  Essa alta dose de subjetividade é o que distingue uma política de cultura de uma política de saúde, para dar um exemplo.  Por isso, na cultura, a esfera pública e a ação necessária parecem, aos olhos filisteus, um capricho agônico. E para o pior ou para o melhor, a cultura é mesmo o lugar onde as disputas tornam os territórios móveis, rachados e, muitas vezes, em fuga. Como falar, então de que é público?

A apropriação da esfera pública

Quando se fala em Política de Estado é necessário que se desvincule de qualquer noção de um Estado produtor de cultura. E aqui começam, de fato, as implicações sobre a noção de esfera pública e de sua apropriação pela sociedade civil.

Joseph Beuys, performer alemão, lembra que “todas as ruas pertencem ao Estado”. O que ele quer dizer com isso é que a esfera pública foi tomada pelo Estado. E além disso, não podemos ser ingênuos e esquecer o quanto a vida pública é privatizada e, também, estruturada de modo excludente. O Estado tem sido, sob muitos aspectos, o modo e o meio dessa apropriação particular e privada do que se entende por “público”.

Nesse sentido, a universalidade formal e burocrática do Estado, como alguns pretendem, é uma boa “conversa para boi dormir”. Mas é verdadeiro também que aos espaços públicos são cenários de lutas, tentativas da sociedade civil para tomar posse da vida pública.

A apropriação corporativa da esfera pública tem dominado o cenário. E não é isso o que estamos vendo, hoje, no debate cultural em relação ao Minc? Há claramente, em curso, uma reorganização dos “proprietários”  e das “centralidades”.

Nesse modo de apropriação e de normatização da esfera pública, o acesso aos pontos de mercado, aos equipamentos públicos, às áreas de exercício profissional, passa a ser controlado por entidades e corporações. O que elas realizam, então, é a tomada de partes do Estado para redistribuí-las a seus membros inscritos e aceitos. O movimento desterritorializante do Estado (como mostra Deleuze, para constituir seu território) é reterritorializado em organismos que se colocam como representantes de setores da criação e protetores do público consumidor.  Não bastando seu domínio sobre o exercício das profissões e mesmo das expressões culturais e artísticas, as corporações almejam os espaços de decisão política na área da cultura.

Em Belo Horizonte, uma grande conquista foi a definição, reivindicada pelos movimentos e acolhida pela Fundação Municipal de Cultura, de que os integrantes do Conselho de Cultura sejam eleitos pelo voto direto e não exclusivamente por entidades. O Conselho torna-se inevitavelmente mais aberto e poroso em relação às dinâmicas da sociedade.

Necessário, aqui, abrir um parênteses. As organizações corporativas, tais como os sindicatos, podem desempenhar um papel importante, como salienta Antonio Negri, quando procuram intervir na representação social e nas lutas pela valorização do trabalhador. Entretanto, cabe ver que a cultura possui uma dinâmica diversa do trabalho material. Além disso, toda um questão de regulação do trabalho, realizada pelo Estado, diluiu-se frente o trabalho imaterial, na etapa do capitalismo cognitivo. Negri sugere que os sindicatos, por sua vez, trabalhem em conexão com os movimentos sociais, promovendo a emancipação. Na área da cultura, assistimos antes um estreitamento político: por que um músico deveria se inscrever na Ordem dos Músicos a fim de se expressar e, ao mesmo tempo, sobreviver profissionalmente? Fecho o parênteses.

O que  se evidenciou nos últimos anos, na área da cultura, é possibilidade de uma modificação de todo esse modo de apropriação da esfera pública. Oposições excludentes como amador e profissional, popular e erudito, pensador e pragmático, entre outras, deixaram de ser operativas. No lugar das centralidades (reivindicada pela atual gestão do Minc), houve uma ênfase nas redes. As hierarquias deram lugar às conexões horizontais. A diversidade e a multiplicidade criaram espaços.

Os movimentos sociais de de biolutas e de micropolíticas não se interessam pela representação: para quê falar por alguém ou no lugar do outro? Não pretendem  ser o conjunto de todos os conjuntos, mas antes e sempre, a disjunção conectiva. Não querem a mediação, mas o acontecimento.  Não querem a influência, mas a contaminação e a proliferação viral. Não querem a massa, mas sim a matilha (correndo simultaneamente no centro e na periferia).

São máquinas de guerra, na acepção de Deleuze e Guattari, seguindo as trilhas de Pierre Clastres (quebra do postulado evolucionista sobre as sociedades). Porém, alguns confundem o conceito desses pensadores com algo agressivo, destrutivo ou, ainda, como uma forma de beligerância. As máquinas de guerra são antes “modelos de fluxo”, “devir e heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante”. E o que é um bando? Deleuze e Guattari afirmam que nele “a chefia é um mecanismo complexo que não promove o mais forte, porém antes inibe as circunstâncias de poderes estáveis”.

É preciso ver que Estado já é o primeiro movimento de rapina, de captura e de estratificação. Os movimentos sociais são máquinas de guerra. E sua ação procura reverter a lógica do Estado. Este opera por um processo que Deleuze e Guattari nomeiam de interiorização. Ou seja, um modo de apropriação. O Estado impõe a lógica do interior e do exterior. O que lhe é exterior é necessariamente destruído ou capturado. Os bandos, ao contrário, fazem coexistir simultaneamente o dentro e o fora.

Para quê uma Política de Estado?

Ao propor uma Política Pública de Estado para a Cultura, não estaríamos criando um monstro? Há outra questão que deve ser levada em conta: a sociedade contra o Estado. Sem enveredar por qualquer noção de utopia, diria simplesmente que precisamos criar mecanismos de reapropriação da esfera pública através do Estado: munir a sociedade, em seus movimentos e dinâmicas singulares, de mecanismos de empoderamento.

Mas é preciso ver sem timidez que, se o Estado já é captura, implica nisso que a sua guerra também se define nas fronteiras com a sociedade! E aqui entra a criatividade dos que operam de um lado e de outro, a fim de promover a tomada da esfera pública. Pois que o Estado sempre empurra para fora a fim de, num segundo momento, totalizar. Quando Gilberto Gil se disse, como Ministro da Cultura, que ele era um hacker, ele não estava, como se diz, “jogando para a plateia”. Ele assumia a necessidade de quebrar o fluxo de captura do Estado, mudando a sua direção.

Alguns gestores governamentais da cultura entendem que o debate, a opção e o conflito devem ficar fora do Estado. O que é um contrassenso, pois a “neutralidade pública” pretendida, já é de partida uma opção política, mesmo que de inspiração weberiana. O modelo de “gestão” que se impõe como norma é uma estratégia de despolitização da esfera pública e do papel do Estado.

A questão a ser colocada é simplesmente a seguinte: as políticas de Estado serão mais excludentes ou inclusivas? E acrescento, mais uma vez: em que medida elas podem favorecer o empoderamento da sociedade civil?

Programas e projetos de política pública – por uma via inclusiva, serão  necessariamente apropriados e capturados pelo Estado, poderia ser dito. Sim, mas com a potência reversa: a recuperação contínua daqueles espaços que foram tomados pela mercantilização da vida e pelo braço que a tem garantido: o Estado! Tomar o Estado contra o Estado: isso é possível? Responderia: mais do que possível, é urgentemente necessário!

A esfera pública, como a encontramos, é cada vez mais uma esfera privada.

Rumo à constituição do comum

Contra a visão burocrática e formalista do Estado, é preciso contrapropor uma perspectiva criativa: a cultura em sua diversidade e multiplicidade. Porém, isso implica em decisão, visão e cumplicidade com a proliferação e a multidão conectada (que se distingue da massa  ignorante a ser informada, ligada). Penso nos Pontos de Cultura, idealizados por Célio Torino, na gestão Gil-Juca Ferreira.

Nessa perspectiva, dois elementos se apresentam: trata-se de pensar a esfera pública sobre outra modalidade de apropriação. O que nos coloca, então, rumo à constituição do comum (Negri e Hardt). É o que discutirei no próximo post.

Mais Referências –

DELEUZE, G. e GUITTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa – São Paulo: Editora 34, 1997.

–  A Lei e o Programa de Fomento ao Teatro  para a cidade de São Paulo – Uma experiência de política pública bem-sucedida – por Fernando Kinas, no Site Estética da Periferia.

– As biolutas e a constituição do comum – por Giuseppe Cocco, no Le Monde Diplomatic.

– A tradição praieira insurgente de Belo Horizonte – por Conjunto Vazio

– Movimento Nova Cena (Minas Gerais) –

– Negri: novo sindicalismo deve unir corporativismo com ação social – por Lilian Arruda, no Site Conexão Sindical.

– Audiência Pública: política de cultura e política da cultura – por  L. C. Garrocho

– Conselho Municipal de Cultura: corporações ou multiplicidade – por L. C. Garrocho

A economia criativa e a economia social da cultura – por Pablo Ortellado.

Mobiliza Cultura – site do Movimento

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

Uma resposta em “Política pública de cultura como política de Estado”

Delegacia ambiental do caiçara ainda persegue os outros pichadores? Vc vai entrar no sistema? Vc está muito agressivo deleziano? Pois te enganaram denovo! Vc fez tudo para não ser enganado denovo, mas te enganaram denovo. Esse deleuse é falso, ele copiou malcopiado a filosofia analítica. E esse delega ambiental com seus pmzinhos, inventaram problema pra mim. Vc sabe do que está acontecendo? Estou te falando porque vc conhece e pode entender.

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