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Agenda Juventude e Pixação (2): equívocos do Movimento Respeito por BH

 


Crítica da criminalização e da campanha movida contra os pixadores

A imagem acima é parte da peça publicitária que a Prefeitura de Belo Horizonte vem divulgando pela cidade, sob a rubrica do Movimento Respeito por BH. A ação do poder público municipal, associando-se a outras esferas, como a Polícia Militar, Polícia Civil e um procurador, visa isso mesmo que está aí na imagem: o pichador no presídio! E mobilizam, através da propaganda, o denuncismo e, nessa linha, tratam o jovem que se expressa por esses meios, nos limiares da legalidade, como bandido!

Como venho mostrando nesse blog e, na última postagem dedicada ao lançamento da Agenda Juventude e Pixação, essa é uma ação que se equivoca como política pública. Mas que se mostra coerente com outras ações que têm por objetivo a criminalização da cultura das ruas, como mostra Naomi Klein no livro em Sem Logo. Essa é uma característica das cidades em que as políticas públicas inclusivas estão abandonadas ou em crise.

O Movimento Respeito por BH procura legitimar e, ao mesmo tempo, encobrir essa financeirização da cidade, sua transformação em “cidade para se vender” (em todos os sentidos). Uma propaganda da “cidade oficial” conjugada com a repressão da cidade como modo de habitar e de se apropriar de tempos e espaços.

 Equívocos do Movimento Respeito por BH

Visitei no início do ano uma exposição do Movimento Respeito por BH. Na entrada, o cartaz reproduzido acima,  foi distribuído por toda a cidade. Aliás, o nome “movimento” já é, em si mesmo, um equívoco. Sugere que exista na cidade um “movimento” espontâneo, disposto a erradicar a “sujeira” e tudo aquilo que “emporcalha” os espaços urbanos, como aparece tanto na mídia. E isso não é verdade. No fundo, trata-se de um dos elementos da “operação”: junto à “repressão qualificada” e ao “despiche” vem a “sensibilização”. Ou seja, a propaganda oficial e, agora, o estímulo à denúncia.

Tenho que falar da exposição, com as fotos de “voluntários” (alunos e alunas das escolas públicas, ciclistas, agentes comunitários etc.) ao lado de banda da Guarda Municipal e os palhacinhos de praxe (coitados dos velhos e dignos palhaços!). Basta dizer que o kitch está ali garantido: textos de escritores como Carlos Drumonnd de Andrade e Guimarães Rosa servindo de comentários poéticos ao “clamor” pela “limpeza”.

É necessário, mais uma vez, ir direto ao assunto: o ato de pixar é passível de punição por reparo do dano. Porém, as autoridades municipais escolheram enquadrar os jovens pixadores no crime de formação de quadrilha. Consequência: os jovens são enviados para os presídios, misturados a criminosos pesados, enquanto aguardam julgamento.

No entanto, parece que a criminalização está fadada ao fracasso. Não só porque, no caso dos Piores de Belô o juiz mostrou lucidez tirando os Piores de Belô do presídio, mas também porque a legislação penal mais recente impede a prisão preventiva por crime de formação de quadrilha. A ideia é a de tirar pequenos infratores da cadéia. Mas, aqui em BH, a lógica é o contrário.

Imitando o “Giuliani time”?

O recrudescimento das penas para os pixadores inspira-se no governo de Rudolph Giuliani, que foi prefeito de Nova York e cujo mote era o lema “tolerância zero”. Acredita-se que a violência diminuiu consideravelmente em função da aplicação do maior rigor para as pequenas infrações. O que fundamentou essa política foi a teoria do “Broken Windows”, desenvolvida por um cientista político e um psicólogo criminologista. Em resumo, a teoria diz que se encontramos todos os dias a mesma janela quebrada isso acaba por gerar uma sensação de impunidade e, consequentemente, de insegurança. Afirma também que a polícia erra ao focalizar somente os grandes crimes, deixando as pequenas infrações de lado.

A expressão “Giuliani time” ficou famosa quando um homem, agredido e sodomizado pela polícia de Nova York, a ouviu dos policiais aos berros.  E que se tornou o título de um filme, de Kevin Keating (veja o trailer abaixo, em Vídeos), expondo a outra versão dos fatos: as mazelas desse estado policial,  inimigo dos artistas, dos pobres, negros e latinos.

Uma das críticas diz que a “limpeza” promovida pela política de “tolerância zero” não passava de um efeito cosmético. Além disso, alguns estudos apontavam que a redução das taxas de criminalidade se deu muito mais em função da menor desigualdade social no período, e da diminuição do uso do crack (vide Referências). Considera-se, também, que a política de “tolerância zero” não passou de uma grande jogada de marketing.  Há um caso que também mostra bem isso, quando: um cidadão foi assassinado na rua por um mendigo com ampla cobertura da imprensa. No outro dia, o prefeito proíbe que os mendigos possam ficar nas ruas! Não se pode ignorar, também, que esse “faturamento” de Rudolph Giuliani se deve ao modo como se projetou em “herói”  do 11 de Setembro. No entanto, seus planos para se candidatar a Presidente dos EUA foram, em vista das denúncias, por água abaixo.

Registre-se que, apesar do grande efeito de marketing da política de “tolerância zero”, a imprensa estadunidense, em sua grande parte, foi crítica e expôs as vozes discordantes, demonstrando independência. Havia advogados dos sem-teto, um reverendo mostrava-se duro e implacável com o “tempo de Giuliani”. E o que temos em Belo Horizonte? Uma imprensa que, em diversos momentos, ou legitima ou clama por ação mais enérgica das autoridades. Os termos da nossa imprensa: “vândalos”, “impunidade”, “penas insuficientes” etc. O modelo da “tolerância zero” é o fermento de um fascismo disfarçado. E não é que já se fala em “BH Capital da cultura e da juventude”?

Primeiro a expropriação, depois a punição por ser um expropriado

Tudo isso lembra mesmo Marx e a teoria da acumulação primitiva na Inglaterra. Primeiro expropria-se o indivíduo dos meios de subsistência, depois ele é  punido com violência (alguns tinham as orelhadas cortadas) por pedir esmolas! Noutro plano, temos a expropriação da vida comum nas cidades, as desapropriações, a verticalização e a total ausência de políticas públicas inclusivas.

Há um documentário sobre Nova York (veja em Vídeos) que mostra as pessoas vivendo nas ruas, as crianças brincando, o convívio entre as vizinhanças. A pergunta: como uma cidade como esta pôde tornar-se tão violenta? A resposta está nessa expropriação da vida comum, no afastamento dos trabalhadores e dos mais pobres para as periferias mais distantes. E também naquilo que Henry Lefebvre chama de redução do habitar ao habitat: as pessoas perdem seus vínculos, o direito à centralidade da vida urbana, confinando-se às funções de procriação e trabalho. Não defendo aqui a ideia nostálgica de uma “comunidade ideal”, que foi perdida. Rupturas, cisões, disputas territoriais, tudo isso tem sido o percurso das comunidades. Mas é preciso ver, nessas movimentações dos territórios e nas desterritorializações, em que se reterritorializam as forças. E nisso, o capital, como processo de desterritorialização máxima, encontra as suas próprias reterritorializações: novas classes de proprietários, novos códigos que servem para marcar subjetividades, outras violências… O pixo é tanto um sintoma desse mal estar quanto a linha de fuga a proporcionar um sentido de existência. Como esses jovens podem aceitar a ideia de propriedade privada e, junto a essa, de patrimônio público?

O Movimento Respeito por BH ignora as transformações que as cidades vêm sofrendo. Desconsidera igualmente a desmontagem e a crise das políticas públicas inclusivas em Belo Horizonte. Em troca, prefere a defesa e o incentivo à criminalização dos jovens que encontram no pixo o seu meio de expressão. Ninguém pode ignorar a complexidade do tema e as diversas implicações, mas, daí, voltar a cidade contra eles, como se fossem bandidos, é outra coisa.

Obs. Esse post não expressa necessariamente a opinião de outros participantes da Agenda Juventude e Pixação.

Vídeos –

Referências

– The rise and fall of New York murder – zero tolerance or crack decline?

Agenda Juventude e Pixação (1): lançamento

Manifesto Liberdade aos Piores de Belô – por Conjunto Vazio

– A agenda Juventude e Pixação tem a coordenação da psicóloga e psicanalista Cristiane Saúde Barreto e a participação, em primeira mão, de Paulo Rocha e deste que vos escreve.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

13 respostas em “Agenda Juventude e Pixação (2): equívocos do Movimento Respeito por BH”

(…). Mas expressa a sua opinião de forma muito esclarecedora e corajosa. Leitura viva da cidade e da política. Muito bom estarmos juntos e em movimento! Um rumo: Habitar a cidade! Cristiane Barreto

Não, não deveria haver tolerância para qualquer autoridade que, no exercício de sua função, abuse do poder. Acredito que a categoria “policiais violentos” deve estar compreendida nisso.

precisamos de mais disso: pensamento crítico e coragem para denunciar as cruzadas pela perfeitização da cidade. cidade, aliás, usurpada por um prefeito perfeito e seus seguidores, os cultuados cidadãos de bem. e bens.
salve, Garrocho!

Olá, Garrocho!

Fui sua aluna na UFMG e fico feliz por ver uma publicação tão perspicaz a respeito da Juventude em BH (e, generalizando, em qualquer outro centro urbano).

Abraços e felicidades (mesmo quando clandestina)

Rosana,
Sim, o tema da juventude nas nossas cidades merece atenção. Em Bh, é isto que estamos vendo: elege-se a cidade como sendo a cidade da “cultura e da juventude”. Como, se a política de Estado tem operado uma reversão em qualquer política inclusiva?
Agradeço pela sua visita.
Abraços

Salve, salve Áurea,

São muitas as violências, não é? E entre estas aquelas perpetradas pelos chamados “cidadãos do bem” e, como você disse, dos “bens”. O exercício crítico é difícil. E não se resume a atacar ninguém, não é? Melhor ver por onde andam nossos desejos e vínculos que estabelecemos a cada momento.
Abraços

Pichação é atentado ao patrimônio público e privado.
Não dá para aceitar que sob a alegação de ser uma forma de expressão da juventude, se atente contra a integridade do patrimônio alheio.
Esses deliquentes têm que ser punidos com trabalhos comunitários e caso tenham menos de 18 anos os pais devem ser obrigados a indenizar os danos.

Sou inclusive a favor da lei das fachadas com padrões mínimos de conservação externa dos imóveis. Se por falta de senso comunitário meus vizinhos negligenciam a aparência de seus imóveis, devem ser multados, porque eu também pago por isso, pois causa desvalorização do meu.

Cidade limpa não é meramente questão estética. Estamos falando aqui de imóveis que exigiram muito suor para serem conquistados e na maioria das vezes representam o principal patrimônio das famílias. Prédios públicos também foram construídos com os impostos derivados do trabalho de gente de bem. Se uma sociedade não é capaz de respeitar isto, sinceramente temo pelo que virá no futuro.

Temos o mal hábito de ridicularizar a civilidade dos países desenvolvidos e as vezes falta senso crítico para vermos que enquanto sociedade eles estão significativamente à nossa frente.

Olá, Rodrigo

Agradeço seu comentário e sua disposição em discutir o assunto.

A “pichação como atentado ao patrimônio público e privado” é um aspecto da questão. Aliás, essa é a questão que está à frente, digamos assim. Não ignoramos isso. Apenas entendemos que o assunto envolve desdobramentos e aponta para outras questões.

A defesa do “patrimônio público e privado” é o que tem guiado as políticas públicas. E digo, infelizmente. A defesa da propriedade é o que define nosso entendimento do que vem a ser uma civilização. E no seu discurso isso fica muito transparente.

Policias, advogados e, agora, administradores públicos e políticos se empenham em criminalizar a pichação com base nessa defesa do direito à propriedade. E que, para dizer a verdade, toma mais importãncia que o direito à vida.

E no caso do pixo – para diferenciar, então, de picho que é o nome “policial” – o que ocorre é justamete o contrário: os valores da vida e da existência se sobrepõem aos valores da vida e da existência. E isso, infelizmente, o debate em torno da questão não tem contemplado. A defesa da propriedade grita mais alto, sempre.Além disso, a noção de patrimônio público não é a mesma. O governador de Minas e o seu prefeito aliado podem parar todo o trânsito da cidade para instalar um relógio esteticamente duvidoso, numa praça pública, para contar os dias que faltam para a Copa! E isso com anúncio da Coca-Cola e tudo o mais.

Não se trata de questionar o direito à propriedade. O que importa é discutir a civilização que o pixo denuncia e o direito à cidade – como direito à existência e ao habitar (e não só ao habitat).

O Estado – esse particular entre os particulares – está sempre ao lado da defesa da propriedade. Todas as armas e instrumentos estão aí, disponíveis. No entanto, quando se trata de políticas públicas inclusivas – que seria dar outro rumo à noção de Estado – basta uma pequena crise para que elas comecem a refluir!

Sobre o fato do pixo “sujar a cidade”: não procede, em minha opinião, em todos os casos. Há situações em que o pixo deu outro ar, outra luz, outra estética para o viver nas cidades. Alguns lugares tornaram-se mais bonitos – apesar de que este não é o problema central do pixo.

Quanto à punição, como você diz, o pixo deve sim encarar a responsabilidade de operar muitas vezes na ilegalidade. E de reparar o dano. Nisso, parece que concordamos.

Acho que podemos cuidar sim de nossas cidades com mais zelo. Concordo com você. Mas nesse “zelo” deve-se incluir o que é da ordem do dissenso. E procurar entender o que vem da obscuridade, o que é do sintoma, e os territórios existenciais que os jovens insistem em criar. Muitas vezes, à revelia da lei sobre a propriedade.

Certamente, é fundamental seu alerta sobre o equívoco quanto ao termo Movimento, por parte do projeto Repseito por BH.
A pixação, sem dúvida, envolve muitas outras questões, além do prezar pelo patrimônio. A despeito de toda a campanha da mídia que já classificou e vociferou, decidida, que não há arte alguma no pixo. além dissso, o poder oferece mão pesada e nenhum diálogo, nesse sentido contrário ao de retirar as pessoas da prisão. é muito comum constatar abusos e desmandos que possuem o único objetivo de “limpar a cidade dessas pessoas”, como se pode ouvir em uma das matérias televisivas sobre a última prisão envolvendo um pixador. acompanhar tal notícia nos faz ver como, claramente, deseja-se gerar um movimento de intolerância, de impossibilidade de convivência com a alteridade urbana, de criminalização e segregação. o julgamento está pronto. agora, nem mesmo denúncia é preciso. qualquer foto é prova! o pixo virou o MAL para BH, sabe-se lá o que são os que o fazem…para dizer o que não podem dizer de outro modo, para dizer do modo como vivem para dizer.
concordo que precisamos lidar melhor com o dissenso, o sintoma, os modos de existir que não compreendemos ou não gostamos.
me estranha demais, ao acompanhar notícias do respeito por BH, ouvir que a campanha de conscientização é o incentivo à denúnicia. que conscientização é essa? o que estamos incentivando? olhar do buraco da fechadura, da greta da janela, e decidir sobre tal impressão tão reduzida?
um abraço
Ludmilla Zago

Ei, Ludmilla

Agradecido pelo seu comentário. Sim, trata-se de um incentivo à denúncia, ao ato de “marcar” os jovens. Aliás, gostei muito de sua fala no seminário “Marcar/ser marcado: Juventude e Pixação”. Abraços.

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