Assimetria

Andando a esmo por textos esparsos encontrei um pensamento, incompleto mas provocador, a respeito da improvisação.

Trata-se do conceito de assimetria, que surgiu no contexto de um exercício improvisacional. No caso, dois performers físico-experimentais (cujo discurso cênico é a própria materialidade cênica), dividiriam, como ponto de partida, o espaço cênico em duas partes. Trata-se de um exercício compositivo em que cada um procura dialogar fisicamente (através do corpo, tempo e espaço) com o outro. Surgiu, nesse exercício, o pensamento sobre a seguinte questão: simetria e assimetria.

A questão passa a ser esta: o exercício se dá em bases simétricas ou assimétricas? Obviamente, aventa-se o exercício da assimetria.

A simetria é uma busca da segurança, da afirmação equilibrada segundo a justa distribuição, idealmente concebida como o meio dividido em duas (ou mais) partes iguais, com pesos respectivos e correspondentes. Pensamento clássico em termos de criação.

O simétrico possibilita uma comunicação em termos da ação: ao fazer o que ele faz em meu campo, busco uma sintonia, a afinação para estabelecer as bases sensoriais/perceptíveis do diálogo.

Comentário: Atuar em uníssono provoca uma sinergia, um contato. Não seria essa uma modalidade de simetria? Entendo que, se a improvisação é simétrica, nada mais acontece. Na composição, a simetria é uma ordem racional. Ela diminui o campo de percepção (dos performers entre si e do público também), pois é totalmente previsível. A assimetria, ao contrário, provoca novas percepções.

Da assimetria surge outro plano: não mais o equilíbrio da totalidade dividida em partes iguais – um tipo de concepção de justiça – mas a diferença ao lado, reivindicando com base na serialiedade das correspondências, em vários tipos de montagens disponíveis. Séries desviantes.

Uma justiça em desequilíbrios constantes, cuja estrutura é vazia, onde o campo sempre se modifica.

Mas uma justiça de outra ordem: ora clama uma dor singular, ora uma oposição polarizada, uma ausência ou uma fala que não se diz, ou outras vias de negação, para afirmar de todo jeito o primado da diferença sobre a identidade.

A assimetria não será a simetria em níveis mais profundos, como o quer (secretamente) a dialética, passando pela afirmação, negação e superação das oposições, subsumidas a um ordem superior. O contrário disso: o que se faz assimétrico não busca leis de negação e identidade. É diverso.

Trata-se de uma justiça que incorpora a tortuosidade dos acasos, sem progresso acumulativo, ascencional.

O exercício improvisacional dos dois performers (ou mais, se quiserem): uso do uníssono como possibilidade de conexão, de impressão sensorial, mas produzindo séries assimétricas, divergentes e desviantes.

Um corpo (que) não representa

A associação entre teatro e representação é uma relação de conjugues. Dissociar essa correspondência tem sido uma tarefa a que venho me dedicando.

Passei a invocar a potência de um corpo que não representa. Uma abertura proporcionada por experimentos cênico-corporais (teatros físicos, pós-dramáticos, dança contemporânea) e pela performance art, incluindo o campo da body art.

Algumas características da representação:

1. Opera com o binarismo forma e matéria, significante e significado. Há sempre algo que remete a algo. A coisa como tal, como se apresenta, não conta. Ela é um suporte para uma significação. Um corpo nunca é um corpo: ele deve representar alguém ou algo.

2. Tem na cena ilusionista sua expressão maior. O teatro do século 18, com a definição da quarta parede, onde os atores estão em outro plano, que não o dos espectadores, é seu rastro mais evidente. Ismail Xavier, analisando o olhar e a cena, cita Roland Barthes, para quem o teatro é o “lugar calculado”, a partir do qual as coisas podem ser observadas.

Cria-se, portanto, um sujeito que mira numa direção (a perspectiva resulta desse lugar preciso), cortando uma superfície, formando um cone do qual o seu olhar é o vértice. Esse sujeito, localizado e pontual, pode representar o mundo por esse teatro, no qual o observador encontra-se separado do observado, mantidos os seus limites. ´

3. A representação tem por corolário a interiorização. Trata-se do mito do fantasma na máquina (uma mente que habita num corpo), criado por Descartes e que foi desmontado pelo fiósofo analítico Gilbert Ryle. Seu livro, The Concept of mind, é hoje um clássico dessa desmontagem da noção de mente como interiorização.

Dito tudo isso, o que acontece quando um corpo deixa de representar?

Adentramos num deserto onde somenta conta a sensibiidade, para pensar com Melevich, no seu Manifesto Suprematista:

“A escalada ao cume da arte não-figurativa é difícil e atormentada…, mas ainda assim satisfatória. As coisas habituais vão recuando pouco a pouco, a cada passo que se dá os objetos afundam um pouco mais na distância, até que, finalmente, o mundo das noções habituais – tudo o que amamos e a que ligamos nossa vida – se apaga completamente.Basta de imagens da realidade, basta de representações ideais – nada mais que o deserto!”

Se o objeto (corpo) deixa de representar, isto não significa uma volta ao binarismo, ou à sua exclusão da arte. Pelo contrário, o objeto volta com os ready made de Duchamp. O encenador polonês, Tadeusz Kantor, que correspondia com Duchamp, foi um dos que inventou um novo plano cênico no qual essa oposição já não mais conta: a volta do objeto pobre.

A minha primeira rebelião em relação à representação deu-se no exercício de Arte-Educação, observando o brincar da criança pequena. Um menino que “monta” num cabo de vassoura não está, ao contrário do que acreditam cognitivistas, gente de teatro e educadores, representando um cavalo. Ele vive a experiência corporal de ser conduzido por um objeto: são as sensações que conta, no caso.

E o “cavalo”? Por que, então, o menino brincaria de “montar cavalo” com um cabo de vassoura? Deleuze, em Crítica e Clínica, abre um plano diverso do plano das representações, no qua se faz possível ver o movimento do menino como mapa, como cartografia intensiva: “os dois mapas, dos trajetos e dos afectos, remetem um ao outro.” Ou seja, o “cavalo” é um mapa do trajeto movimento-cabo de vassoura (ou bastão).

Isso mudou minha visão em Arte-Educação. Rompi com os programas de jogos teatrais. Comecei a ver o mundo com outros olhos. Deu-se a emergência de corporeidades que fizeram fugir a representação.

Para dar um só exemplo, passei a pedir aos atores, nos exercícios de improvisação (que chamo de física e experimental): aí está uma cadeira, trabalhe com ela sem representar.

Uma arte que começa por aí.

Bibliografia:

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
RYLE, Gilbert. The concept of mind. Chicago University Press, 1984.
XAVIER, Ismail – O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naif, 2003
Confira também trechos do Manifesto Suprematista, de Malevich, no bloco de notas do site de Dudude Herrmann: http://www.dududeherrmann.art.br/

Definição de arte


“Arte é o que faz a vida ser mais interessante que a arte”

Robert Filliou

http://arts.fluctuat.net/robert-filliou.html